Artigo: Mutualismo inovador – Por José Ribeiro Pena Neto*

José Ribeiro Pena Neto

O sistema de previdência complementar brasileiro assumiu a partir da década de 2010 tendência aparentemente irreversível em direção aos planos de contribuição definida, abandonando a experiência tupiniquim da contribuição variável. Desde então, preocupa-nos muito a falta de um instrumento que assegure ao assistido ter renda até a morte. Em artigo anterior, neste espaço, já chamamos a atenção para o fato de que nosso sistema está excessivamente focado na fase de capitalização individualista. Não vemos nenhum esforço de nossas entidades, das autoridades, do sistema segurador nem financeiro para criar uma alternativa que permita ao poupador previdenciário, não só na previdência fechada como na aberta, ter renda vitalícia e adequada.

Fazemos uma ressalva, porém. Recente evento internacional promovido pela Subsecretaria do Regime de Previdência Complementar trouxe especialistas que falaram de anuidades, tontines e planos de contribuição definida coletivos (CDC). As anuidades, que de longa data são oferecidas em muitos países do mundo – é verdade que com muitas críticas principalmente por seu custo –, não chegaram ao Brasil. Os CDC, pouco comuns, mas já presentes em alguns países, e os tontines em sua versão moderna, pois foram concebidos há séculos, nunca tinham sido discutidos – creio – em nosso país. Esses produtos são soluções mutualistas, que propiciam renda vitalícia na fase de fruição do benefício e cujo risco financeiro e de longevidade não impacta os patrocinadores.

Sempre defendemos a ideia de que a experiência internacional deve servir de exemplo e inspiração para nós, ainda que sujeita a tropicalizações. Por isso, entusiasmou-nos ler texto de Keith Ambachtsheer, um dos maiores especialistas do mundo em previdência, sobre um modelo inovador de transformar em renda vitalícia o capital acumulado em planos CD. Interessante é que ele parte do caso do plano da Universidade da Columbia Britânica (UBC), no Canadá, criado há meio século e que nunca teria sido copiado com sucesso ao longo desses anos. E chega à implantação, em maio último, pelo fundo QSuper da Austrália, de um produto chamado Lifetime Pension (pensão vitalícia) inspirado no plano da UBC. Esse produto tem como principais características: a) paga uma renda vitalícia para o participante e, opcionalmente, para seu cônjuge; b) pode ser adquirido entre os 60 e os 80 anos de idade; c) os valores pagos são reajustados anualmente com base na rentabilidade líquida do fundo e na mortalidade ocorrida; d) garantia de recebimento mínimo do valor aportado.

Em paralelo com a iniciativa australiana, a empresa canadense Purpose Unlimited lançou um fundo de investimentos batizado Longevity Pension Fund (LPF), com o objetivo de transformar o capital aportado pelo investidor em uma renda vitalícia. Dessa forma, é possível a qualquer pessoa ter renda até morrer sem a necessidade de pagar caro a uma seguradora. Os pagamentos são reajustados todo ano de acordo com a rentabilidade do fundo e a mortalidade verificada, há uma garantia de recebimento do valor aportado e projeção de aumento do valor recebido mensalmente ao longo do tempo.

O que torna viável esses produtos? São baseados no modelo dos tontines, produto concebido no século XVII, que caiu em descrédito no final do século XIX por uso fraudulento e foi proibido nos Estados Unidos, mas que de alguma forma continuou a existir em países como a França e a Suécia e atualmente é regulamentado na União Europeia. Mesmo nos Estados Unidos onde é considerado ilegal, há produtos com características de tontines operando, como as anuidades variáveis do TIAA, fundo de pensão de professores, e planos de funcionários públicos em Wisconsin.

Os tontines modernos têm sido estudados na academia por alguns autores e trazidos para a vida real por profissionais do mercado financeiro e previdenciário mundo afora. Entre eles está Richard Fullmer, que fez apresentação no seminário da SURPC já citado. Ele publicou diversos textos sobre o tema, entre os quais sugerimos Tontines A Practitioner’s Guide To Mortality-Pooled Investments, que aborda vários aspectos desse interessante instrumento financeiro. Outra indicação para conhecer mais sobre tontines, de uma forma mais leve, é assistir à entrevista de Dean McClelland à Real Vision. Ele criou na Irlanda a empresa Tontine Trust que oferece produto de renda vitalícia para pessoas físicas, assim como uma plataforma para que fundos de pensão, governos e empresas financeiras incorporem os tontines a seu portfólio.

Na nossa visão, os tontines podem ser utilizados em nosso país pelas entidades fechadas de previdência complementar sem a necessidade de alterações na atual legislação. Com a palavra, nossos juristas e atuários. Claro que algo feito em sintonia com as autoridades seria muito mais seguro. Aliás, o QSuper lançou seu produto instigado pelos reguladores australianos que conclamaram o sistema de fundos de pensão, chamado Superannuation, a encontrar uma solução para a falta de produto adequado de renda vitalícia.

A implantação de tontines no Brasil iria requerer também cuidadosa avaliação técnica, financeira e atuarial, para que o sistema seja justo com seus participantes, como descreve Fullmer no texto acima mencionado, evitando transferências intergeracionais e outras distorções. Voltando ao exemplo do QSuper, lá levaram algum tempo para implantar o produto, no esforço de fazê-lo simples, atraente e eficiente.

Outro ponto importante a considerar é encontrar um nome que soe melhor no Brasil. Fullmer, em seu estudo, aponta essa necessidade nos Estados Unidos devido à ma fama adquirida no passado pelos tontines e à associação com mortalidade. Aqui, além disso, a palavra tontine não traz à mente um produto nem financeiro nem previdenciário e pode remeter a tonto, o que não seria conveniente. Aqui, com a palavra nossos comunicadores.

Retomando um ponto do artigo anterior, entendemos como fundamental que a inovação tão apregoada no sistema de previdência complementar não se restrinja aos processos, mas alcance também o produto. E que o produto não seja bom apenas na fase de acumulação, mas também na hora de produzir renda. Os tontines podem garantir renda vitalícia a preço justo sem risco para os patrocinadores. Quem sabe sejam a solução inovadora de que precisamos para os atuais e futuros assistidos do nosso sistema. Isso viria a comprovar uma frase de Tom Morton, co-fundador da MTV, que disse “inovação é pegar duas coisas que existem e juntá-las de um jeito novo”. Portanto, estaríamos inovando com um produto que já existe há quase 400 anos, trazido para um sistema organizado há cerca de meio século.

Neste momento em que boa parte de nossa sociedade se inclina para o individualismo e que no nosso sistema alguns apontam o mutualismo como problema, a ideia dos tontines vai no caminho  de tratar o mutualismo como solução. Mais que isso. Mutualismo é a razão de ser da previdência.

*Ex-Diretor-Presidente da Abrapp e ex-Diretor Presidente da Forluz. Atualmente é Consultor de Previdência Complementar. 

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