Artigo: Um exemplo de como detectar ilusões nos balanços financeiros dos IPO´s – por Anand Kishore*, do Daycoval

Anand Kishore

O Brasil vem desde o final do século 20 vivendo um aquecimento no mercado de capitais, com a emissão de dezenas de novas empresas por ano (IPO´s). A estabilidade de preços, o juros em patamares menores, a desbancarização e o financial deepening, através cada vez mais da democratização da informação e de produtos financeiros, estão permitindo às empresas acessarem o mercado de capitais e os investidores terem acesso a investimentos em empresas em vários setores e assim permitindo o crescimento do país.

Mas será que todas as empresas que vêm ao mercado são genuinamente empresas de qualidade do ponto de vista de vantagem competitiva? Será que as demonstrações financeiras refletem com exatidão o seu desempenho operacional? Estas são perguntas que um investidor profissional sempre tem que refletir e analisar.

No intuito de ajudar a profissionalizar cada vez mais o mercado de investimentos, neste artigo trazemos algumas técnicas para tentar detectar ou alertar do que é possível que uma determinada empresa possa estar usando de manobras contábeis para embelezar os seus resultados e com isto ser superavaliada ou até mesmo estar camuflando o que pode ser uma grande fraude corporativa.

Convém sempre lembrar que estamos aqui tratando de extremos, não se referindo a nenhuma operação específica e ressaltando que estamos tendo uma safra de emissões, algumas com excelentes oportunidades, mas que as técnicas a que nos referimos neste artigo são indispensáveis para uma decisão de investimento devidamente embasada.

Vale ressaltar que qualquer análise econômica financeira para que a mesma seja qualitativamente boa, além claro da competência técnica do profissional de investimento, os dados financeiros têm que ter uma origem fidedigna. É minimamente esperado que os números a serem analisados já tenham sido auditados, por empresa de auditoria competente e livre de qualquer conflito de interesses com a empresa emissora. E o analista de investimento têm que ter a capacidade de entender as várias flexibilidades que são permitidas ao se contabilizar as várias linhas que compõem os demonstrativos financeiros (Exemplos: Depreciação, estoques, provisões, etc). Um princípio muito importante numa análise econômica financeira, segundo John Kenneth Galbraith (Galbraith, 1997) :

GI x (1+e-imt)∑sinx = GO x (1+e-imt)∑sinx

GI (Garbage IN) = GO (Garbage OUT)

Ou seja, simplificando se o analista utilizar dados ruins como inputs em sua análise (Garbage in), o output de sua análise será um resultado ruim (Garbage out).

Técnicas para detecção de embelezamento de demonstrações financeiras

Existe uma linha tênue entre praticar uma fraude e um embelezamento de uma demonstração financeira. O fato de se utilizar da flexibilidade das regras contábeis para tornar o lucro de uma companhia maior não quer dizer que houve manipulação ou a certeza de fraude contábil, mas pode, em alguns casos, revelar os primeiros indícios de um possível posterior desvio de conduta mais grave.

Como dito, o embelezamento das demonstrações financeiras não quer dizer que haja fraude, mas ao avaliar uma empresa, em um IPO ou em uma empresa já listada, isso pode levar a uma superestimação do valor da companhia e por isto o analista tem que estar muito atento a estas manobras contábeis, que também pode ser chamada de “contabilidade frouxa” segundo Warren Buffet (Buffet, 2002) .

Um dos conceitos contábeis que se deve estar muito atento, ao analisar um balanço são os famosos “accruals”. O método contábil de acruar contas quer dizer acumular, crescer ou inflar e vários itens contábeis estão sujeitos a esta discricionaridade.

Vamos tentar colocar um exemplo (Carlisle, 2013) simples de como este conceito de acruar ou accruals podem afetar a análise de valuation de uma companhia. Considere dois estudantes o Falson e o Warrent. Ambos os estudantes durante as suas férias, para ajudar no pagamento de seus estudos oferecem o serviço de jardinagem. Durante os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro cada um cuida de 10 jardins e ao final de cada período enviam uma nota fiscal de R$10,00 aos seus clientes referentes aos serviços prestados. E consideremos que ao final deste período, dois clientes não pagam os serviços contratados, mas não estão ainda em default. Desta maneira temos uma demonstração financeira simplificada dos serviços prestados por Falson e o Warrent.

Podemos observar que no caso do Warrent ele adotou uma prática contábil mais conservadora onde ele, considerou o atraso do pagamento como uma despesa de provisão a devedores duvidosos (PDD) e que afetou o seu lucro líquido e manteve o seu contas a receber zerado e o seu fluxo de caixa da operação igual a R$80, que foi o que ele realmente recebeu ao fim deste período. Já no caso do Falson, ele adotou uma prática contábil mais flexível ou mais frouxa, onde ao final do período o seu lucro líquido totalizou R$100, ou seja ele não provisionou o atraso do pagamento dos cliente e contabilizou o atraso em contas a receber de R$20. E o seu fluxo de caixa permaneceu em R$80 igual ao do seu concorrente Warrent.

Se hipoteticamente estas duas empresas fossem fazer o IPO de suas operações e o investidor fosse avaliar o valor de mercado destas companhias pelo múltiplo de Preço/Lucro (P/L) de 5 vezes. O valuation da empresa do Falson seria de R$500,00 e o da empresa de Warrent a avaliação seria de R$400,00. Pelo exemplo acima, ambas as empresas são iguais (operam o mesmo serviço, para os mesmos clientes, nos mesmos prazos e geram o mesmo fluxo de caixa) e deveriam ter a mesma avaliação econômico financeira, só que na empresa do Falson foi utilizada uma contabilidade frouxa o que levou a uma avaliação maior e na empresa do Warrent foi utilizada uma contabilidade mais realista e obteve uma avaliação menor, quando utilizado o múltiplo baseado em lucro e não de fluxo de caixa.

Este é um exemplo hipotético e simplificado de que como o conceito de accruals podem afetar a percepção de valor de uma companhia baseada em lucro contábil e levar a decisões erradas sobre o valor a ser pago no valuation de uma empresa.

Vários estudos acadêmicos como o paper “Earnings management and the long-run market performance of IPOs” (Siew Hong Teoh, 1998) e o paper “Earnings managment stock issues, and shareholder lawsuits” (L.L. DuCharme, 2004) comprovam que as empresas que se utilizaram de contabilidade frouxa, mais especificamente de altos índices de accruals em seus balanços financeiros para inflar o seu valor de mercado nos seus IPO´s, tiveram um desempenho ruim nos três anos subsequentes às suas ofertas de ações.

E isto ocorre porque os investidores pagaram caro em suas ações quando avaliaram o desempenho da empresa baseado em seu lucro contábil inflado por acrruals e não consideraram o fluxo de caixa da empresa. Com o passar do tempo, estas empresas mostram dificuldade em manter o crescimento de lucro prometido e o otimismo com estas empresas desaparece, refletindo na baixa performance destas ações.

Os artigos acadêmicos “Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings?” (Sloan, 1996), e “Do investors overvalue firms with bloated balance sheets?” (David Hirshleifer, 2004) sugerem um guia para detectar estes embelezamentos contábeis nas empresas e com isto evitar um valuation superestimado.

Baseado nos artigos acadêmicos citados no parágrafo anterior, foram implementadas algumas metodologias para detectar os excessos de accruals. No caso do Sloan a medida de Excesso total accruals (ETA), em inglês ele definiu como Scaled Total Accruals (STA), pode ser definida como:

  1. ETA= (VAC-VPC-DEP)/ATIVOS TOTAIS onde,

VAC = Variação em ativos circulantes – variação de caixa e equivalentes

VPC = Variação em passivos circulantes – variação em passivos de longo prazo – variação em impostos a pagar

DEP = Despesas de depreciação e amortização

Uma outra fórmula simples para calcular o excesso total de accruals (ETA) é:

  1. ETA= (LUCRO LÍQUIDO – FLUXO DE CAIXA DAS OPERAÇÕES)/ATIVOS TOTAIS

No artigo acadêmico “Do investors overvalue firms with bloated balance sheets?” (David Hirshleifer, 2004), o autor define a seguinte fórmula para detectar excessos de accruals, o SNOA (Scaled net operating assets):

  1. SNOA = (OPERATING ASSETS – OPERATING LIABILITIES)/TOTAL ASSETS onde,

Operating assets = Ativos totais – caixa e equivalentes

Operating liabilities = Dívida de curto prazo – Dívida de longo prazo – equivalência patrimonial – patrimônio líquido

Foram simulados portfólios long and short com ações americanas no período de 1965 a 2002, utilizando as fórmulas (2) ETA e (3) SNOA onde o portfólio comprado era em ações com baixo ETA ou baixo SNOA e o portfólio vendido em ações com alto ETA ou alto SNOA, e o resultado foi a geração de alfa positivo consistentemente ao longo do tempo. Isso comprova que o mercado financeiro precifica positivamente ao longo do tempo as empresas com balanço de qualidade e penaliza as empresas com contabilidade frouxa. O resultado deste estudo pode ser comprovado no livro Quantitative Investing, capítulo 3 (Carlisle, 2013).

No caso do ETA, este indicador mede o fluxo corrente dos accruals e enquanto no SNOA é uma medida que captura o crescimento dos accruals ao longo do tempo. E ambas as medidas são muito úteis em identificar manipulações contábeis e atuam como guardiães da ilusão.

Portanto estes indicadores assistem o investidor em detectar uma empresa aparentemente de qualidade, quando na verdade é uma vendedora de ilusão com pesadas manipulações contábeis produzidas pelo corpo executivo da empresa para superestimar o seu valor de mercado. É claro que não são as únicas ferramentas que o analista tem a disposição, mas com certeza são umas das mais relevantes.

Como este artigo procurou se concentrar em alguns aspectos quantitativos da análise, sempre é importante lembrar que os critérios qualitativos da companhia e também os critérios ESG complementam a avaliação, que deve ser feita antes de se decidir pelo investimento.

*Gestor de fundos de renda variável e multimercado da Daycoval Asset Management

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