*Edição n. 445 da Revista da Previdência Complementar – uma publicação da Abrapp, ICSS, Sindapp e UniAbrapp.
Entrevista com Ricardo Pena, por Flávia Silva
Ricardo Pena tem uma visão bem ampla da Previdência Complementar Fechada: ocupou diferentes cargos na antiga SPC (Secretaria de Previdência Complementar) até tornar-se seu titular. Foi Diretor-Presidente da Previc entre 2010 e 2011 e, ainda, Diretor-Presidente da Funpresp-Exe por quase uma década. A experiência de gestor, fiscalizador e participante, atribuição conquistada mais recentemente, o tornaram, segundo suas próprias palavras, mais maduro e sensível às necessidades do setor. “Chegamos com muita vontade de fazer o sistema crescer”, diz, acrescentando que, para tal, é preciso “virar a chave”.
Nesta entrevista exclusiva, o Auditor Federal e Doutor em Demografia discute estudos para flexibilizar as normas de solvência, a necessidade de atrair patrocinadores, bem como trazer os investimentos diretos em imóveis de volta ao centro das discussões, proibição, aliás, que ele diz não compreender bem. “É um pouco a visão de que fundação é banco e tem que ter tudo líquido”, observa. Tratar entidades diferentes de forma diferente, segundo determina a SBR, e aprimorar o processo sancionador também são alguns dos assuntos abordados de forma aprofundada a seguir. “Minha perspectiva é tratar todos os dirigentes com boa-fé; eles estão imbuídos de boa-fé, são competentes, foram escolhidos e estão fazendo a gestão do plano.”
Confira a entrevista:
O senhor já passou, digamos assim, por todos os “lados” de um fundo de pensão. Liderou a SPC e a Previc, foi dirigente, tornou-se participante e agora volta à supervisão. Muda alguma coisa na sua perspectiva? Esse novo mandato será diferente dos anteriores?
Ricardo Pena – Muda sim. Eu era auditor, fui galgando como gestor, assumi como Diretor, Secretário Adjunto e depois Secretário da Secretaria de Previdência Complementar (SPC). Fui dirigente por nove anos de uma fundação que começou do zero e também participante, e estive no governo de transição em novembro e dezembro, quando se discutiu o diagnóstico e as propostas para o setor. Eu tinha uma visão mais burocrata; agora venho com uma sensibilidade maior para os assuntos da previdência.
Acredito que a previdência perdeu muita importância relativa nos últimos anos. O governo a deixou de lado e deu prioridade talvez para outra área. Nosso objetivo é tentar retomar a prioridade que a poupança, até pelo tamanho, importância e o que pode ser feito em termos de proteção social com os investimentos de longo prazo, teve nos mandatos do Presidente Lula e da ex-Presidente Dilma. Por exemplo, em termos de regime tributário, previdência do servidor, instituidor, regras de investimento. Muita coisa que foi feita sinalizou a importância do setor e eu acho que isso pode acontecer novamente.
Acredita que o governo atual dará o suporte necessário, tornando prioritárias as demandas e necessidades das EFPCs?
Ricardo Pena – O governo está começando, eu não tenho nem 20 dias no cargo. Há uma demanda muito grande das entidades, das associações. Primeiro a gente tem que conhecer o que está sendo feito, reorganizar, e realmente colocar essa agenda da necessidade de fazer com que o setor tenha prioridade. A orientação a partir do relatório de transição é fazer esse diagnóstico e tomar as ações necessárias. Dez medidas prioritárias foram sugeridas no relatório; agora é montar, no âmbito do Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), que vai ser pilotado pelo Ministério, um Grupo de Trabalho, a exemplo do que foi feito lá no primeiro mandato do Presidente Lula, para fazer uma revisão do marco regulatório, da supervisão e da fiscalização e ver o que pode ser melhorado, revisto. Esse é o primeiro pontapé, que acho que está perto de sair.
Já existe uma linha de tempo mais palpável para que esse GT seja formado?
Ricardo Pena – A ideia é que a formação desse Grupo ocorra nos 100 primeiros dias de governo. Depois teremos um prazo para o relatório, que será levado para o CNPC, para a Câmara de Recursos da Previdência Complementar (CRPC) e para o Conselho Monetário Nacional (CMN). A partir desse diagnóstico, a gente da um “kick off” de início da agenda de melhorias, aperfeiçoamentos e prioridades para que o setor possa se desenvolver.
Até porque não é algo que dependa só da Previc, já que há outros atores envolvidos…
Ricardo Pena – Sim, inclusive a Abrapp, participantes, empresas, governo. A ideia é que nós façamos um diálogo quadripartite para que se possa mediar as intenções do setor e dar um rumo a essas demandas de aperfeiçoamento.
Poderia dar mais detalhes sobre a área de fomento a ser criada pelo supervisor? Quais as alternativas mais importantes para fazer o sistema crescer?
Ricardo Pena – Nesses primeiros dias tenho constatado que havia no governo anterior uma visão de que fundo de pensão era banco: existe relatório de estabilidade, não pode ter imóvel, tem provisão de risco de crédito… Sobre o relatório de estabilidade, primeiramente essa palavra nem existe nas Leis Complementares 108 e 109. Lá diz que a ação do Estado, além de proteger os interesses dos participantes, é desenvolver a Previdência Complementar, em linha com o desenvolvimento econômico e social. Parece-me, ainda, que a autarquia tinha uma visão muito burocrática do setor, então a ideia é retomar o que havia no início do primeiro mandato do Presidente Lula, quando tínhamos, por exemplo, o Carlos de Paula cuidando da área de fomento. Essa é a minha intenção, mas ainda estamos montando a equipe. Proponho virar um pouco a chave.
Para você ter uma ideia, ano passado houve 600 pedidos de retirada de patrocínio. É muita coisa! O setor precisa trabalhar um pouco o estímulo. Creio que estamos vendo o estímulo do plano família, dos entes federativos, mas acho que teve nesse último período um excesso de regras, de regulação. Eu me assustei com o tamanho da coletânea de normas do setor. Lembro que no início era um caderno pequeno, agora é uma coisa enorme. A empresa que vê aquilo toma um susto. Eu, se fosse uma empresa, não entraria na Previdência Complementar. Durante a pandemia, cerca de 80 empresas abriram capital na Bolsa, e isso é o símbolo maior do capitalismo brasileiro, mas pergunta quantas empresas abriram um plano de previdência? Aqui no nosso setor, nenhuma. Então alguma coisa está acontecendo. A gente precisa organizar essa agenda e ao mesmo tempo respeitar o ecossistema porque tem patrocínio de todo tipo: público, privado, de multinacional.
Quando você ouve a Eletrobrás dizendo que vai contratar 1000 pessoas e abrir um plano de previdência para elas, é uma ótima notícia, só que a gente precisa fazer isso mais vezes, com empresas grandes, médias… A ideia dessa área é poder organizar, ter um relacionamento com as entidades e com os patrocinadores e instituidores para saber o que está faltando para melhorar esse canal de fomento, de estímulo. Até nos entes federativos a gente está vendo alguns problemas nos planos que estão sendo criados: baixas taxas de contribuição, tem a situação dos Tribunais de Contas… precisamos desobstruir esses canais para desenvolver, ou seja, é preciso virar a chave. Não vai ser simples virar essa chave para que tenhamos fomento alinhado a políticas governamentais de crescimento. Esse é o objetivo porque a poupança previdenciária é algo muito bom para o País. Nos países desenvolvidos, eles estimulam a previdência privada.
Sim, como, por exemplo, via a adesão automática, que se mostrou muito eficaz onde foi implantada.
Ricardo Pena – Eu fui pioneiro na adesão automática, que a gente fez lá na Funpresp. Fui no Congresso, conversei com deputado, depois com o relator, com o pessoal do governo. Quando montei a Funpresp, achei que ia ter uma fila de gente na fundação. No primeiro e no segundo mês, só 11% dos novos servidores entraram. Tinha resistência do sindicato… depois da adesão automática, esse percentual foi a 88%. Uma fundação que veio do zero hoje arrecada 1,5 bilhão por ano. Acho que é isso que está faltando: um pouco mais de iniciativas que às vezes são simples. Precisamos de estímulos para ajudar as pessoas a formarem a Previdência Complementar e vou trabalhar pra isso. Sei que os desafios são grandes, a própria estrutura da Previc hoje talvez não permita muita coisa em termos de pessoal. Para você ter uma ideia, o último concurso foi em 2010! Os sistemas de tecnologia também precisam melhorar, necessitamos entrar nessa agenda de simplificação e desburocratização para ver se reduzimos a percepção de excesso regulatório, que inclusive foi indicada em pesquisa recente feita pela Abrapp.
Então a questão regulatória seria o ponto de partida para o fomento?
Ricardo Pena – Nós precisamos virar a chave com relação ao que estava sendo feito; caso contrário, entraríamos num run off. Um estímulo seria, por exemplo, o governo anterior não tomar o Renda Mais, que é um produto de renda fixa, com um apelo de previdência. Aquele recurso, que foi um sucesso no lançamento, poderia estar aqui. Em que pese acreditar que todo esforço de previdência é válido, eu gostaria de defender um pouco a nossa experiência, que é vitoriosa. A gente já passou por muita coisa: CPIs, questionamentos, operação Greenfield. O setor continua de pé, resistente, e tem soluções de previdência para oferecer.
Em entrevista ao blog da Abrapp, o senhor falou sobre a financeirização dos planos de estados e municípios, bem como do objetivo de “desenvolver e estimular as EFPCs para ofertar planos com soluções completas de proteção previdenciária”. O que pode ser melhorado?
Ricardo Pena – Os planos de servidor público e os planos família são CD puros. Hoje tem muitos por aí e constatamos uma concentração. Até o final de fevereiro, 661 entes já haviam entrado e você tem basicamente quatro entidades que reúnem a maioria dos planos, normalmente ligadas a banco ou segurador. Esses planos na verdade estão oferecendo uma cobertura previdenciária baixa, com 0,5% a 2% de taxa de contribuição, o que vai gerar uma frustração daqui a alguns anos, e isso não é bom em termos de fomento. Um estudo da antiga Secretaria de Previdência mostrou que uma linha d’água mínima contributiva seria de 6,5%, então a gente vai passar a exigir algum estudo de taxa de reposição, de projeção de população ou de curva de salário dos entes para discutir um pouco os conceitos de previdência que estão faltando.
Esses planos também não oferecem cobertura de invalidez, morte, sobrevivência, e eu estou falando da experiência que vivi na Funpresp. Lá a gente construiu uma solução interna, ou seja, dentro da taxa de contribuição de 8,5%, tinha um pedaço destinado a esse tipo de cobertura. Logicamente há vários modelos, mas a gente quer discutir também essas coberturas; caso contrário, vira um plano de seguro: o participante paga, por exemplo, R$30 para previdência e vai comprar um seguro de R$200, com formação de pouca reserva. A reforma obrigou os entes a criar a Previdência Complementar e talvez essa primeira leva não tenha tido, até pelo volume, tanta acuidade com a questão previdenciária. Esse é o conceito de rever a financeirização dos planos.
A gente também deve rever internamente alguns requisitos porque, inicialmente, de 661 entes, muitos vieram com um pacote, uma coisa meio acelerada de licenciamento automático. A gente pode até ajudar os entes a rever o conceito do plano. Esse é um trabalho de médio e longo prazo.
A questão dos investimentos diretos em imóveis deve ser revista? De que forma?
Ricardo Pena – A gente estudou isso durante o governo de transição e realmente a restrição introduzida na Resolução do Conselho Monetário foi muito forte. Vale lembrar que os imóveis sempre estiveram no portfólio das fundações desde a primeira Resolução, lá em 1978. Naquele momento, inclusive, era obrigatório investir em imóveis até para estimular a construção civil, assim como em ações e títulos públicos. Depois da Lei Complementar 109 passou-se a se trabalhar com limites máximos, e o de imóveis foi sendo reduzido. Essa regra de 2018, na verdade, limitou a montagem do portfólio, e até hoje eu não entendo o porquê. O CPP (Canada Pension Plan), por exemplo, investe em imóveis aqui, comprou participação no Grupo Iguatemi, enquanto as fundações daqui não podem. Eu realmente queria que alguém me explicasse isso.
O juro real do Brasil ficou negativo há três anos e, quando o juro está muito baixo, é excelente investir em imóveis, inclusive para a pessoa física. Então me pareceu que houve um certo preconceito com as fundações. Foi algo muito ruim, sobretudo porque, no longo prazo, será preciso vender, colocando as entidades numa situação de “corner”: ela é obrigada a vender o portfolio numa data, e o grupo de compradores, sabendo disso, vai fazer alguma combinação para forçar o preço para baixo. Imagina vender um imóvel por 6 milhões e um mês depois revender por 200 milhões? Isso vai dar problema. O gestor vai estar protegido porque fez um leilão, mas alguém vai auferir um ganho que não era para ser auferido. Nosso objetivo é levar isso para o Conselho Monetário Nacional e retomar esse investimento adaptado à realidade.
Também obrigaram as fundações que investirem em imóveis a ir para um fundo imobiliário, pagar imposto, taxa de administração… Para o gestor, isso é um absurdo. É um pouco a visão de que fundação é banco e tem que ter tudo líquido. Nos bancos está líquido porque há exigências de buffers, do Acordo da Basiléia. Eu estava na Funpresp durante a pandemia, quando o preço dos imóveis despencou. Foi oferecido para a gente o imóvel da sede da Funpresp com 40% de desconto e nós queríamos comprar, o que foi negado pela Previc. Ou seja, nem sede mais a fundação pode ter. Agora imagina se no Banco Central vão proibir o Bradesco de ter a Cidade de Deus? Eu duvido. Essa visão precisa ser adaptada e melhorada porque a lógica da diretriz de investimento do Conselho Monetário é abrir um cardápio de opções de acordo com o plano, se é BD ou CD, se está jovem ou pagando mais benefício, etc.
É o gestor que vai montar o portfólio, então, pode haver fundações com mais apetite para investir no segmento, como por exemplo a Funcef, cujo patrocinador conhece o setor, financia imóveis e tem uma carteira imobiliária grande. Outras, por sua vez, não têm essa aptidão ou até mesmo restrições. Como são limites máximos, o objetivo da regra não é restringir, mas abrir um leque de opções, e é isso que pretendemos fazer: retomar e inserir esse segmento, talvez no mesmo patamar de 8%, permitindo que as entidades, assim como os fundos estrangeiros que estão no Brasil enxergando oportunidades, possam também realizar investimentos nessa área. (Continua…)
Clique aqui para ler a entrevista completa na íntegra