No último dia 23/10/2024, foi publicado o acórdão do julgamento do Recurso Especial nº 1.795.982, no qual se discutia a interpretação do art. 406 do Código Civil (CC), que dispõe sobre os juros legais de mora.
Nesse julgamento, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por 6 votos a 5, reafirmou o entendimento de que “[o] art. 406 do Código Civil de 2002 deve ser interpretado no sentido de que é a SELIC a taxa de juros de mora aplicável às dívidas de natureza civil, por ser esta a taxa ‘em vigor para a atualização monetária e a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional’”, afastando explicitamente a prática comum de diversos tribunais estaduais de fixar os juros moratórios em 1% ao mês (a.m.), com base no art. 161, §1º, do Código Tributário Nacional (CTN).
Para estabelecerem essa tese, os Ministros consideraram os seguintes aspectos: (i) a norma remete à taxa em vigor para a mora de impostos federais, que é a SELIC. Assim, a interpretação do artigo deve ser feita em consonância com essa referência; (ii) a SELIC é vista como um índice que não apenas incorpora correção monetária, mas também compensa a mora, oferecendo uma solução integrada e alinhada com a realidade econômica do país, especialmente no controle da inflação; (iii) a decisão reafirma posicionamento já adotado pelo STJ e recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive após a Emenda Constitucional nº 113/2021, que consolidou a utilização da SELIC em obrigações envolvendo a Fazenda Pública; (iv) o uso de juros fixos de 1% a.m., além de correção monetária, distorce os incentivos econômicos e pode gerar enriquecimento sem causa, desestimulando acordos e promovendo o uso excessivo do Poder Judiciário.
Esse entendimento do STJ se aplica aos casos em que os juros de mora não foram previamente definidos (responsabilidade contratual) ou quando decorram de determinação legal (responsabilidade aquiliana), nos exatos termos do art. 406 do CC (“quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei”) e do voto vencedor condutor do acórdão[1].
Embora essa decisão reafirme entendimento já fixado pela própria Corte Especial do STJ desde 2008[2], o julgamento não ocorreu sob o regime de recursos repetitivos, mas apenas uniformizou o entendimento dos demais órgãos fracionários do STJ sobre o assunto, nos termos do art. 16 do Regimento Interno da Corte[3]. Esse entendimento, portanto, não vincula os tribunais estaduais.
Se um tribunal local determinar a incidência de juros de mora de 1% a.m., a alteração dos juros de mora pela SELIC demandará o correto e tempestivo manejo de Recurso Especial, contendo capítulo específico acerca deste ponto, com a realização do adequado cotejo analítico, demonstração da similitude fática e da divergência jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão paradigma, sob o risco de prevalecer os juros de mora de 1% a.m.
Além dessa questão de ausência de vinculação dos tribunais estaduais, é de se destacar que o resultado da votação demonstra que a questão não é pacífica e outro resultado poderia ter sido alcançado, considerando que 4 (quatro) ministros que integram a Corte Especial não participaram do julgamento.
No mais, a conjugação desta decisão com outros entendimentos do mesmo STJ (em especial de que a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária) pode trazer dificuldades práticas em determinadas situações, sobretudo quando o termo inicial dos juros de mora não é o mesmo da correção monetária, como bem salientado pelo voto vencido do Min. Luis Felipe Salomão[4].
Essa discussão ganhou novos contornos (ou ao menos deixou de prorrogar essa discussão no STJ) em razão da promulgação da Lei nº 14.905/24, que, alterando os artigos 389 e 406, ambos do CC, fixou expressamente que os juros de mora (não contratados ou contratados sem taxa estipulada ou estabelecidos por determinação legal) equivalem à diferença entre a SELIC e o IPCA. Ou seja, os juros de mora legais desde a promulgação de referida Lei é a taxa de juros reais (se positiva).
Embora, à primeira vista, a tese da Corte Especial e a nova legislação possam parecer convergentes, há diferenças importantes: (i) o STJ reafirmou o entendimento de que a taxa dos juros de mora do art. 406/CC é a taxa SELIC (a ser cumulado com o outro entendimento consolidado de que a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária) – ou seja, se houver algum período no qual há apenas a mora, haverá a cobrança integral da SELIC; (ii) já a Lei 14.905/24, ao estabelecer os juros de mora como a taxa positiva de juros real [taxa de juros menos inflação], na mesma situação hipotética, teria juros de mora bem inferiores;
Novos capítulos desta discussão também poderão surgir conforme o andamento das discussões de reforma do Código Civil. Isso porque, no Relatório Final[5] dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, que foi entregue no Senado Federal em abril de 2024, há previsão de alteração do art. 406/CC para fixar os juros moratórios em 1% a.m. (quando não convencionados) e limitar os juros moratórios convencionais a 2% a.m.
É necessário aguardar para ver como os tribunais estaduais, na prática, se comportarão a partir desta nova decisão que reafirma entendimento da Corte Especial do STJ, bem como de que forma o STJ solucionará os potenciais problemas de aplicação prática já ventilados no acórdão. Talvez, a Lei nº 14.905/24 poderia servir como baliza da aplicação dessa decisão do STJ às situações concretas especificas em que os termos iniciais dos juros de mora e correção monetária não são os mesmos.
*William Akira Minami é Coordenador Titular da Comissão Sudoeste de Assuntos Jurídicos; e Francisco Ponciano Júnior é Coordenador Titular da Comissão Nordeste de Assuntos Jurídicos
[1] “Do texto da lei, constata-se ser uma regra supletiva, a qual terá aplicabilidade sempre que os agentes contratantes não estipularem expressamente uma taxa convencional. Em todas as demais hipóteses, o dispositivo passa a ter aplicação. Então, na omissão das partes envolvidas, os juros moratórios “serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”, e aí está o ponto de interpretações diferentes.”.
[2] EREsp n. 727.842/SP, relator Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 8/9/2008, DJe de 20/11/2008
[3] Art. 16. As Seções e as Turmas remeterão os feitos de sua competência à Corte Especial: (…) IV – quando convier pronunciamento da Corte Especial em razão da relevância da questão jurídica, ou da necessidade de prevenir divergência entre as Seções.
[4] “5. Nesse passo, revela-se também crucial destacar a peculiaridade atinente aos diferentes termos iniciais dos juros moratórios e da correção monetária referentes a dívidas civis decorrentes de responsabilidade civil contratual ou extracontratual. // De fato, em se tratando de indenização por danos morais decorrentes de responsabilidade civil contratual, a jurisprudência firme do STJ determina a incidência de juros de mora a partir da citação e de correção monetária a contar do arbitramento definitivo do quantum indenizatório (Súmula 362/STJ). (…) // Situação análoga – fluência dos consectários legais em marcos distintos – ocorre na hipótese de danos morais decorrentes de responsabilidade civil extracontratual, em que se acrescem os juros de mora a partir do evento danoso (Súmula 54/STJ), computando-se a correção monetária – assim como ocorre com o dano moral decorrente de responsabilidade contratual – desde a data do arbitramento (Súmula 362/STJ). // No tocante à indenização por danos materiais – lucros cessantes ou danos emergentes – a diferença de termos iniciais dos consectários em tela se repete. Assim, (i) cuidando-se de responsabilidade contratual, os juros moratórios devem ser contados da citação e a correção monetária a partir do evento danoso (Súmula 43/STJ); (ii) no caso de responsabilidade extracontratual, os juros de mora fluem desde o evento danoso (dano-evento), nos termos da Súmula 54/STJ, e a correção monetária inicia-se na data do efetivo prejuízo (dano-prejuízo), à luz da Súmula 43/STJ (…) // Nesse quadro, revela-se inquestionável o fato de que a incidência de juros de mora e de correção monetária em dívidas civis, decorrentes de responsabilidade contratual ou extracontratual, não observa fluência simultânea”.
[5] https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf, acesso em 24/10/2024