Artigo – Litigância de massa e previdência complementar: lições e desafios da ADPF 1.025 – Por Amarildo Vieira de Oliveira*

Nos dias 28 e 29 de novembro, teve lugar, em Lisboa, o Fórum sobre Impactos Econômicos e Sociais dos Litígios de Massa, oportuno evento organizado pelo Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe).

Como o nome indica, o propósito do Fórum foi abordar questões relacionadas à litigância de massa no Brasil e no continente europeu, discutindo soluções que não apenas minimizem o impacto econômico, mas, sobretudo, priorizem o bem-estar social.

Foi, portanto, nesse ambiente de profunda reflexão acadêmica e ampla responsabilidade institucional que tive a honra de compor um dos painéis do evento. A minha missão era muito clara: evidenciar a magnitude econômica e social do setor de previdência complementar brasileiro, destacar a evolução recente do setor e, principalmente, chamar atenção para os riscos de desestabilização sistêmica da previdência complementar caso os conceitos básicos e estruturantes passem a ser objeto de flexibilizações judiciais.

O setor de previdência complementar é, por definição, massificado. Tem por objeto a gestão centralizada de recursos pertencentes a um contingente muito amplo de pessoas. São esforços econômicos individuais e centralizados em unidades de gestão, mas apenas para que, assim mobilizados em conjunto, sejam otimizados e possam futuramente se reverter em benefícios previdenciários de fruição também individual.

Atualmente, por essa dinâmica, algo em torno de 8,5 milhões de pessoas (entre participantes ativos, participantes aposentados, pensionistas e dependentes) estão vinculadas a 275 entidades fechadas, que fazem a gestão de um patrimônio de R$ 1,3 trilhão, montante equivalente a 11,4% do PIB nacional. É, portanto, desse patrimônio total que se pagam aproximadamente R$ 100 bilhões por ano em benefícios previdenciários.

Gestões financeiras de funcionamento coletivo

Em previdência complementar, porém, não apenas os números globais são superlativos. Os valores ou objetivos a que eles servem também o são. Fala-se, como dito, de um sistema de arrecadação e gestão financeiras de funcionamento coletivo, mas que é engendrado para viabilizar a subsistência e o bem-estar de todos e cada um de seus participantes e assistidos na sensível fase de aposentadoria. Daí por que toda e qualquer questão originada do setor de previdência complementar não pode deixar de considerar essa dupla dimensão: o visual do todo, indicativo da importância geral do setor para a economia e para o sistema de proteção social do país; e a sua conceitualidade como um instrumento de reserva patrimonial individual.

Noutras palavras, se, em termos da gestão centralizada dos recursos, cada participante e assistido são parte de um todo, o fato é que, no plano da titularidade jurídica, cada um deles é um todo à parte. De modo que se há de ter, em matéria de previdência complementar, um cuidado redobrado em termos de rigor conceitual e de justiça alocativa. Pois, se adotada uma visão monocular para a resolução desse ou daquele conflito, é possível que se desencadeie um movimento de litigância massiva que poderá comprometer severamente a sustentação global do sistema e esvaziar a esfera de direitos de participantes e assistidos completamente alheios à questão.

Nesse sentido, é particularmente sensível e importante a questão endereçada ao STF, pela Abrapp, na ADPF 1.025. Sob relatoria do ministro André Mendonça, a ação tem por objeto um conjunto de decisões judiciais (encabeçadas por acórdãos do STJ) em que se permite que participantes e assistidos de fundos de previdência complementar, cujas reservas não foram suficientemente constituídas e já se exauriram, acessem os recursos de outros fundos administrados pela mesma entidade fechada. Mas fundos que, afora a coincidência da entidade responsável pela gestão, nada mais têm a ver entre si.

São fundos, esses que vêm sofrendo os desfalques para o pagamento de benefícios alheios, que se referem a submassas distintas, com patrocinadores e participantes que nada têm a ver com a situação dos requerentes. De modo que esse tipo de decisão promove uma série de consequências deletérias para o sistema de previdência complementar: dissocia o direito à fruição dos benefícios da constituição prévia de recursos, um pressuposto de matriz constitucional; aniquila a independência patrimonial entre fundos distintos; esvazia o direito de propriedade de vários participantes que, integrando outros fundos, nada têm a ver com a questão dos fundos não formados.

Decisões que comprometem a estabilidade do sistema

A ADPF aponta, portanto, para um quadro bem caracterizado de lesão a preceitos fundamentais. Quadro esse que está a merecer uma resposta de alcance amplo e eficaz do STF, com a anulação dessas decisões comprometedoras da estabilidade do sistema. Do contrário, sem a clareza dos limites de exposição patrimonial, os fundos de previdência complementar tendem a se desidratar por efeito da perda de confiabilidade do sistema.

Quando menos, o setor tende a retornar a modelos de gestão datados e menos eficientes, como os que vigoravam no Brasil na década de 1970, quando cada entidade administrava apenas um fundo, de um só patrocinador. Atualmente, 99,6% dos patrocinadores fazem parte de uma entidade fechada classificada como multiplano e/ou multipatrocinada, de modo que reverter essa situação seria se colocar na contramão da evolução setorial.

Considerados os custos de manutenção de uma entidade fechada, esse cenário pode afetar a própria decisão das empresas e entidades públicas de patrocinar planos, o que se torna ainda mais grave ao se considerar que, por efeito da EC 103/2019, a previdência complementar se tornou imperativa para estados e municípios, os quais, por uma questão clara de eficiência e expertise setorial, têm comungado esforços para estruturarem entidades fechadas responsáveis pela gestão de diferentes fundos municipais.

AGU e Previc a favor de ação da Abrapp

Não é à toa, portanto, que a AGU e a Previc, especificamente, tenham se posicionado de modo contundente a favor da ação da Abrapp. Destacaram, entre outros pontos, que a orientação decisória impugnada na ADPF 1.025 “pode vir a criar um inegável risco para o equilíbrio financeiro e atuarial das EFPC administradores de multiplanos”.

Ilustrando esse ponto, percebe-se que o déficit somado de fundos administrados por entidades multiplanos e multipatrocinadas totaliza R$ 38 bilhões. Esse, portanto, é o tamanho do risco adicional a que aproximadamente 1,6 milhão de participantes solventes estarão expostos se não sanada essa questão pelo STF. A revelar, portanto, todo o potencial multiplicador de demandas judiciais que tem essa questão. Aliás, o risco envolvido na ação é também de ordem macroeconômica, com impactos significativos no fluxo de investimentos de projetos de longo prazo no país, pois sabe-se da importância das reservas alocadas em previdência complementar como fonte de financiamento do Brasil.

Portanto, ao ensejo da participação que tivemos no recente evento organizado pelo Fibe, em Lisboa, espera-se haver contribuído para que a combinação entre visão sistêmica e rigor conceitual possa impedir ou minimizar os riscos da litigância massiva no setor de previdência complementar.

 

*Amarildo Vieira de Oliveira é Diretor-Presidente da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud)

Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)

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