Artigo: A decisão proferida no RE 722.528/RJ em 16/12/2024 e as entidades fechadas de previdência complementar – Por Aparecida Pagliarini*

Aparecida Pagliarini, Coordenadora da Comissão de Ética do Sindapp

Quando cheguei na Velha e Sempre Nova Academia em 1968, passando pelas arcadas com um dicionário de latim/português para enfrentar as aulas de Direito Romano, deparei-me com o Professor Goffredo da Silva Telles Jr. Pessoa extraordinariamente sábia, generosa e amiga dos alunos, o que demonstrava no carinho com que transmitia seus ensinamentos no curso de Introdução à Ciência do Direito. Nunca mais vou me esquecer da primeira aula, da ordem do caos.

Não pode haver ordem onde não haja multiplicidade de coisas, multiplicidade de seres: onde não haja coisas ou seres distintos para ordenar, isto é, para relacionar uns com os outros e colocar em seus devidos lugares. “Não há ordem sem distinção”, disse Santo Thomaz de Aquino.

(…)

E não pode haver ordem sem determinação do fim em razão do qual uma disposição conveniente é dada a seres múltiplos, e por força da qual tais seres passam a constituir uma unidade.

A disposição conveniente, que é a disposição de seres múltiplos em razão de um fim prefixado, relaciona seres distintos, conjuga-os de maneira que cada um, de acordo com sua natureza ou destinação, ocupe, dentro do conjunto, seu lugar próprio, passando a ser parte de um todo, elemento de uma unidade.

Obrigada, Professor.

Pois bem. No dia 24 deste mês de março foi publicado o inteiro teor do acórdão de decisão proferida no RE 722.528/RJ, apreciando o tema 1.280 da repercussão geral, fixando a seguinte tese, nos termos do voto do Senhor Ministro Gilmar Mendes, vencidos os Senhores Ministros Dias Toffoli (Relator), Edson Fachin, André Mendonça, Luiz Fux e Nunes Marques:

“É constitucional a incidência de PIS e COFINS em relação a rendimentos auferidos em aplicações financeiras das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC).”

De acordo com a leitura que faço nas 69 páginas do inteiro teor do acórdão, pouco se analisou sobre a natureza ou destinação das EFPC para ordená-las como unidades no conjunto da multiplicidade de seres distintos dentro de determinada ordem, a ordem tributária de fatos geradores do PIS e do COFINS. Ao contrário, tomaram-se seres múltiplos que não constituem uma unidade ordenada material ou formalmente, o que impede considerá-los com o mesmo fim o que, de certa forma, encaminha o regime de previdência complementar para uma “crise de identidade”.

Realmente. Ao tomar-se como fundamento a alteração do artigo 195 da Constituição que definiu o fato gerador do PIS e da COFINS com a Emenda Constitucional nº 20/1998, não é considerado que a mesma Emenda deu nova redação ao artigo 202 da Carta inserindo a previdência privada no título da Ordem Social e não no título da Ordem Econômica e Financeira. Seres distintos foram ordenados, então, no texto constitucional.

A distinção é óbvia, principalmente pelos princípios que regem as duas ordens. A Ordem Econômica e Financeira, para ficar apenas com dois deles, se rege pela livre concorrência e pela defesa do consumidor. A Ordem Social, de seu lado, deve sair em busca do bem estar e da justiça sociais requerendo, para isso, políticas de Estado adequadas e de longo prazo a fim de garantir poupança que deve amparar circunstâncias de infortúnios a que todos se sujeitam ao longo da existência (“existência” que vem se prolongando e exigindo mais e maior poupança).

Ao ordenar a multiplicidade de matérias, a Constituição dá-lhes disposição certa e conveniente, um fim determinado, já que a ordem, a ordem constitucional, dá unidade a situações e causas distintas. O exemplo oferecido pelo Mestre se encaixa perfeitamente para o que se pretende concluir:

Para esclarecer essa noção, seja o seguinte exemplo. Tijolos, telas, madeiras, ferros jogados ao léu, num terreno baldio. Constituem, pois, uma multiplicidade de materiais de construção, mas de materiais não relacionados, não conjugados, não ligados uns aos outros, em razão de um fim comum. Tais coisas, evidentemente, não estão em ordem, ou seja, não estão na ordem em que estariam se fossem componentes de uma casa. Estão em “desordem”. Em consequência, não são partes de um só todo, não constituem uma unidade. Mas, esses mesmos materiais, quando ligados uns aos outros na construção de uma casa, isto é, ligados em razão de um fim comum, acham-se dispostos em ordem. Em consequência, passam a ser partes de um só todo, e a constituir uma unidade. 

Ao contrário dessa ordem que fundamenta e sustenta a ordem jurídica, a leitura mais atenta do Acórdão confunde, porque sua tese foi tirada da desordem:

  1. Fala-se em imunidade tributária que, como é sabido, existia ao tempo da promulgação da Lei nº 3.475/77, mas foi derrubada por decisão da mesma Corte em 2001, RE 202700/DF, de Relatoria do Ministro Maurício Corrêa.
  2. Comenta-se sobre a remuneração de membros dos órgãos de administração da EFPC como se isso desautorizasse sua natureza de agente da Ordem Social, sem considerar que essa possibilidade já estava prevista mesmo à época de que as EFPC eram consideradas imunes, porque equiparadas a instituições de assistência social;
  3. Descaracterizam a “isenção”, sem considerar que, se fosse o caso da análise, tratar-se-ia de hipótese de não incidência;
  4. Divide-se as “receitas” da EFPC como “primárias”, porque vertidas por patrocinadoras e participantes, sem considerar que o regime obrigatório de capitalização das reservas faz com que os resultados dos investimentos retornem às mesmas reservas dos planos e não são receitas primárias, secundárias ou terciárias da EFPC, muito menos “receitas operacionais” da entidade;
  5. Trata-se o contrato privado que tem como partes, de um lado, o patrocinador e, de outro, o participante atribuindo-se de forma equivocada a EFPC como captadora de “vultosos recursos” de onde “extrai recursos de aplicações financeiras”;
  6. Olvida-se que os investimentos estão alinhados em políticas propostas pela diretoria e aprovadas pelo conselho deliberativo, acompanhadas de perto pelo conselho fiscal que deve, emitir, no mínimo semestralmente, um relatório de controle de riscos não só com relação à qualidade dos ativos investidos, mas quanto ao atingimento de metas atuarialmente calculadas.

Para não me estender mais, porque o rol não é exaustivo, parece-me que falta entender de forma mais apurada, consciente e fundamentada a real natureza das entidades fechadas de previdência complementar: cumprem relevante papel de suprir o Estado na sua função de garantir vida digna a todos os cidadãos no território nacional e promover o bem estar social, de um lado, e, de outro, é um dos mais valiosos instrumentos de fonte de financiamento e do crescimento econômico também do Estado, investindo de acordo com regras e parâmetros que o mesmo Estado fixa através do Conselho Monetário Nacional.

Ao final, parece-me, também, que tudo isso passa ao largo de “atividade empresarial” que faz parte de outra ordem. Como se sabe, a nossa Constituição é a casa pronta.

Obrigada, Professor Goffredo!

 

*Aparecida Pagliarini é Sócia do Escritório Pagliarini Advogados

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