Artigo: Entidade fechada de previdência complementar não é (e nunca foi) instituição financeira – por Aparecida Pagliarini*

O Acórdão do Recurso Especial nº 1.854.818-DF (2019/0383155-9)

 

Entidade fechada de previdência complementar (EFPC) não é – e nunca foi – instituição financeira. Ainda que sabido, em nome dessa afirmação são cometidos alguns equívocos.

A primeira lei que regulou a previdência privada no Brasil1, em 1977, já dizia que as EFPC não podiam ter finalidade lucrativa2, dizia também que as EFPC deveriam constituir reservas técnicas, fundos especiais e provisões para garantia de todas as suas obrigações3, dizia ainda que as aplicações dessas reservas e fundos deveriam se dar de acordo com diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional4.

Em 1978, o CMN editou a Resolução nº 4605 com as diretrizes que deveriam ser observadas pelas EFPC na aplicação e capitalização das reservas técnicas de modo a lhes preservar segurança, rentabilidade e liquidez6, com o evidente objetivo de preservar a saúde dos planos de benefícios para cumprir sua finalidade básica: execução e operação desses planos, conforme dispôs a Lei7.

Essa primeira Resolução que disciplinou a aplicação das reservas técnicas das entidades abertas e fechadas foi acompanhada da Nota Explicativa CMN nº 6. O item V.4 merece a transcrição:

V.4 Posicionamento das Entidades de Previdência Privada na Comunidade de Negócios

Os artigos 15 e 16 da Resolução nº 460 colocam as entidades de previdência privada em sua posição real: a de investidores institucionais, mas não a de instituições financeiras. A única atividade empresarial permissível a tais entidades é a de previdência privada. Atuar como instituições financeiras, competindo com as instituições especializadas e autorizadas, é estritamente vedado por se constituir numa burla à legislação existente sobre o Sistema Financeiro Nacional.

Ou seja: desde 1978 já se tem certeza de que é estritamente vedado às EFPC atuar como instituição financeira. Mas é desde lá também que o CMN traça os critérios e diretrizes para a aplicação dos recursos correspondentes às reservas, às provisões e aos fundos de constituição obrigatória como continua dizendo agora a Lei Complementar nº 109/20018. Outra coisa também não se alterou: a natureza das EFPC: operadora que tem como objetivo principal instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciário9, sem finalidade lucrativa10. Ou seja, “continua tudo como dantes no quartel de Abrantes”11.

O primeiro equívoco decorre da natureza de uma operação que capitaliza as reservas técnicas dos planos de benefícios e que, em nenhuma hipótese, pode ser considerada operação igual ou assemelhada a “contrato de crédito bancário”. A operação com participantes está disciplinada pelo CMN em norma que dispõe sobre as diretrizes de aplicação dos recursos garantidores dos planos administrados pelas EFPC, repito.

Pois bem. Na aplicação dos recursos dos planos de benefícios a EFPC (leia-se seus administradores) deve se guiar por padrões de conduta. Especialmente destaco12: observar os princípios de segurança, rentabilidade, solvência, liquidez, adequação à natureza de suas obrigações e transparência; exercer suas atividades com boa fé, lealdade e diligência; zelar por elevados padrões éticos; adotar práticas que garantam o cumprimento do seu dever fiduciário em relação aos participantes dos planos de benefícios, considerando, inclusive, a política de investimentos estabelecida, observadas as modalidades, segmentos, limites e demais critérios e requisitos estabelecidos na Resolução CMN nº 4994/2022.

Ora, como se vê, os investimentos feitos pela EFPC com as reservas dos planos de benefícios não se dão de forma aleatória, ou, menos ainda, à semelhança de instituição financeira. Devem ser observados outros requisitos legais e regras de conduta pelos administradores. Com isso, quero dizer – e estou dizendo – que também na gestão do patrimônio dos planos não há qualquer identidade da EFPC com instituição financeira. Desde 1978.

Assim sendo, para cada plano de benefícios administrado pela EFPC, o conselho deliberativo deverá aprovar uma política de investimentos elaborada pela diretoria no início de cada exercício, de forma segregada, de acordo com regulamentação do órgão encarregado pela supervisão e fiscalização do segmento. De outro lado, cada política de investimentos, além de ser adequada a cada plano de benefícios, deverá estar restrita aos ativos classificados e enumerados exaustivamente pela norma13, significando que não há espaço para a administração optar por qualquer outra modalidade de produtos. São eles: renda fixa; renda variável; estruturado; imobiliário; operações com participantes e investimentos no exterior.

Destaquei as operações com participantes com o propósito de avaliar um outro equívoco (o primeiro é afirmar que a EFPC é instituição financeira). Este segundo equívoco deriva de considerar a opção de incluir esse segmento na política de investimentos do plano de benefícios como operação bancária ou assemelhada às operações de mútuo praticadas pelas instituições financeiras. Não é. E não só não é, como não pode ser, uma vez que se trata de modalidade de investimento das reservas garantidoras dos planos14, ou seja, deve, como os demais, estar de acordo com as diretrizes estabelecidas. Especialmente a adequação à natureza das obrigações contratadas por cada plano, suas especificidades, necessidades de liquidez e os fluxos de pagamentos dos ativos, de forma que sejam compatíveis com os prazos e o montante das obrigações atuariais, com o objetivo de manter o equilíbrio econômico-financeiro entre ativos e passivos do plano15.

Realmente, para manter esse equilíbrio, a Resolução CMN nº 4994/2022 requer dos administradores dos planos de benefícios que os encargos financeiros das operações com participantes  devem ser superiores a taxa mínima determinada atuarialmente para planos estruturados na modalidade de benefício definido ou ao índice de referência estabelecido na política de investimentos, para planos constituídos em outras modalidades, acrescidos da taxa referente à administração das operações e de taxa adicional de risco16. E não só isso, os contratos firmados com participantes devem conter cláusula de consignação em pagamento da reserva até o limite do resgate para minimizar o risco de inadimplência.

Esse segundo equívoco pode levar ao entendimento de que “é ilegítima a cobrança de juros remuneratórios acima do limite legal”, uma vez que “há expressa proibição legal de obtenção de lucro pelas entidades fechadas”, considerando “que as entidades fechadas de previdência complementar não são equiparadas ou equiparáveis a instituições financeiras”, como decidiu o Superior Tribunal de Justiça17.

Ora, se a EFPC não é instituição financeira de um lado, de outro não pode ser instituição de caridade, uma vez que as operações com participantes são feitas com reservas garantidoras dos planos de benefícios de acordo com regras, parâmetros e princípios do CMN que devem ser observados para cada plano e de acordo com a sua modalidade e de maneira que seja mantido o equilíbrio econômico-financeiro entre ativos e passivos do plano.

Do entendimento do E.STJ vejo o terceiro equívoco: o de que a remuneração do investimento representa obtenção de lucro pelas entidades fechadas. Primeiro, porque a Constituição colocou a previdência complementar fechada na Ordem Social18 e não na Ordem Econômica e Financeira, onde está o Sistema Financeiro Nacional19.

Segundo, porque, como apontado na ementa, a Lei Complementar nº 109/200120, proíbe a finalidade lucrativa da EFPC. Terceiro, porque o regime de capitalização das reservas dos planos de benefícios é imperativo de ordem constitucional, uma vez que as reservas devem garantir o benefício contrato, de acordo com as modalidades de planos e seus regulamentos. Quarto, porque, se a EFPC não pode ter finalidade lucrativa, seus administradores devem buscar a rentabilidade das reservas garantidoras nos exatos termos das regras, parâmetros e princípios do CMN, de acordo com a apolítica de investimentos de cada plano de benefícios. Quinto, porque a rentabilidade que se deve alcançar com os investimentos não representa lucro para a EFPC, vale repetir. Sexto, porque a operação com participantes não é operação bancária e nem a ela se assemelha, uma vez que se trata de modalidade de investimento das reservas dos planos de benefícios e, como os demais segmentos, se submetem às diretrizes do CMN.

Para não ser cansativa, deixo outras reflexões para outra oportunidade, mas quero concluir dizendo que a decisão do STJ poderá vir em prejuízo dos participantes dos planos de benefícios, uma vez que, em razão da crise econômica e dos cenários que se apresentam, poderão se privar das operações de empréstimo autorizadas pelo CMN para os investimentos das reservas dos planos de benefícios operados pelas EFPC. Considerando que não são investimentos obrigatórios, ou seja, considerando que não está a entidade obrigada a investir nesse segmento, poderá ela não contemplar a modalidade nas políticas de investimentos dos planos. Ou seja: se a decisão do STJ não autoriza a remuneração que o investimento das reservas dos planos exige sob os aspectos legal e atuarial, certamente, por cautela e para cumprir o dever fiduciário,  os administradores das entidades deverão avaliar mais esse risco (além de tantos outros) nas suas decisões sobre as políticas de investimentos de cada plano de benefícios.

*Aparecida Pagliarini21, Advogada formada pela Universidade de São Paulo, sócia fundadora do escritório Pagliarini e Morales Advogados Associados, coordenadora da Comissão de Ética do Sistema Abrapp/ Sindapp; consultora de entidades fechadas de Previdência Complementar.

 

Notas:

  1. Lei nº 6.435
  2. Art. 4º, § 1º
  3. Art. 40
  4. Art. 40, § 1º
  5. De 23 de fevereiro
  6. Inciso I
  7. Art. 39 da Lei nº 6.435/77
  8. Art. 8º, § 1º
  9. Art. 2º
  10. Art. 31, § 1º
  11. A frase surgiu em Portugal, no início do século 19, ameaçado pela invasão de Napoleão à península ibérica. Chegou ao Brasil em 1808 com a família real e eu uso com bastante frequência ainda hoje.
  12. Resolução CMN nº 4994/2022, art. 4º
  13. Art. 20
  14. Art. 25, I
  15. Art. 5º
  16. Art. 25, § 4º
  17. Recurso Especial nº 1.854.818-DF (2019/0383155-9)
  18. Art. 202
  19. Art. 192
  20. Art. 31, § 1º
  21. http://lattes.cnpq.br/9908980987494480
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