O planejamento das políticas públicas dentro das organizações estatais segue diversos modelos, predominando indiscutivelmente o modelo funcionalista. Qualquer que seja o modelo de desenho e implementação da política pública, a formulação desta implica num jogo de poder.
Os diversos stakeholders que estão em volta com a construção do desenho da política pública vão desde sociedades sem fins lucrativos, sindicatos, empresas, associações civis.
No entanto, não padece de dúvidas que os agentes estatais ou agentes políticos tendem a dominar as forças de poder decisório neste processo.
Neste ensaio, tentaremos atrair a atenção do leitor para o fato de que, embora o Estado seja de ordinário o stakeholder dominante no desenho da política pública, nem sempre a política alcançará o impacto desejado sem que haja o conhecimento e a participação dos atores da sociedade civil.
Isso pode acontecer pelo desconhecimento da complexidade das relações sociais e econômicas da realidade social ou de mercado, ou em muitos casos pela ausência de legitimidade do processo decisório, que mingua de participação democrática.
O caráter democrático do planejamento e das políticas públicas – Como a quase totalidade dos autores de ciência política do início da idade moderna, o Estado, o Leviatã de Hobbes, seria uma instituição necessária para, através do Direito, regular a convivência pacífica em sociedade, coibindo o estado de natureza.
Entretanto, esse poder do Estado necessita de ter limites. É o que Locke pontua quando expõe que deve haver uma coordenação de expectativas recíprocas entre o estado e o cidadão, ou, como preleciona Reis: o poder não serve à coordenação de expectativas se tiver de se impor sempre pela força (2020, p. 131).
Após esses precursores (não que na Antiguidade e na Idade Média algumas questões de teoria geral do Estado já não tivesse sido objeto de ponderações de filósofos como Platão e Aristóteles), é necessária a permanente busca de se avançar no estudo das relações entre governo e sociedade.
Para dissecar as capacidades de que deve revestir-se a atuação estatal na prestação de serviços públicos, trazemos ao presente ensaio a classificação de Gabriel Almond, que divide as capacidades do Estado em devolver em serviços os tributos que a sociedade lhe cede, exercitando as capacidades extrativa, reguladora, distributiva, simbólica e responsiva.
A capacidade extrativa (cobrar impostos) antecede a todas. Almond condiciona a capacidade distributiva à capacidade reguladora. (REIS, 2020).
De modo que em sociedades iniciais, quando existem apenas as duas primeiras capacidades, há um vácuo no atendimento pelo Estado de necessidades sociais que somente pelas capacidades distributivas e responsivas podem ser alcançadas.
No entanto, em sociedade complexas, no mundo moderno, Almond trata da “reserva” de autoridade de que o Estado se dota, adquirindo legitimidade pelo exercício de capacidades, o que ele indica ser o aspecto do apoio (support propensities) (REIS, 2020). Portanto, sem a participação democrática da sociedade nas decisões para a formulação e a implementação das políticas públicas, o processo de decisão dos governantes se enfraquece.
O desenho da política pública, atores, forças, Estado e democracia – No desenho da política pública, indiscutivelmente, além de uma correta identificação do problema, do planejamento, da decisão sobre os objetivos e da adequada escolha dos meios, ressalta-se a relevância de ampla participação dos diversos stakeholders envolvidos nas discussões (MCCONNELL; GREALY; LEA, 2020).
Apesar dessa premissa, como se falou anteriormente, em geral ocorre uma total dominância dos atores estatais na formulação e implantação da política.
No artigo “Policy success for whom? A framework for analysis”, Allan McConnell, Liam Grealy e Tess Lea (2020) analisam a importância dos diversos atores na formulação e implantação de dada política pública, trazendo como exemplo um estudo de caso ocorrido na Austrália.
O artigo discute uma estrutura ideal para ajudar na análise do tema sucesso da política para quem. Os autores identificam um processo que consiste em três etapas, para que os estudiosos analisem as formas e extensões do sucesso experimentado pelos atores da política pública.
A aplicação prática foi o caso de estudo do programa Fixing Houses for Better Health (FHBH) na Austrália. Não há dúvida que inicialmente o stakeholder principal do projeto era uma entidade sem fins lucrativos, a Healthabitat.
Após o sucesso inicial de seu trabalho, com a ajuda estatal, o programa continuou a crescer. Entretanto, aos poucos a Healthabitat foi perdendo espaço quanto ao poder decisório dentro da referida política. Na busca de entender processos como este ocorrido na Austrália, os autores sugerem a adoção de um método científico para estudar a influência e o poder dos diversos atores envolvidos em todo o processo de formulação e implementação da política.
Eles propõem um método em três etapas, em que o primeiro passo visa a desenvolver o critério de sucesso de determinado ator da política, em seu desenho, no programa e nos aspectos políticos da política pública. O segundo passo envolve o exame e avaliação dos resultados da política para um dado ator especificamente. E o terceiro passo seria uma testagem do passo 2.
O estudo de caso Fixing Houses for Better Health (FHBH) foi inicialmente capitaneado pela Healthabitat de maneira independente. A Healthabitat era uma instituição sem fins lucrativos que desde 1985 trabalhava para prover melhores condições de moradia e saúde para os aborígenes australianos, cujo sucesso atingiu seu pico em 1999. Entretanto, em 2011, a entidade foi convidada a se retirar do palco decisório do programa, que passou ao total controle do Estado.
Isso demonstra que, até 1999, como ator, a Healthabitat era o principal stakeholder. Com a ajuda da Commonwealth o programa avançou bastante, e embora os resultados tenham sido alcançados e os impactos tenham sido altamente positivos, a entidade sem fins lucrativos perdeu o poder decisório no processo.
Após a entrada do Estado no desenho da política, o poder da Healthabitat no projeto variou bastante ao longo do tempo. E mais, o estudo constata que após uma década de sucesso à frente do programa FHBH a entidade sem fins lucrativos foi retirada do controle da agenda. Como em outros casos mundo afora, a efemeridade é a regra em programas habitacionais que visam dar melhores condições de higiene, saúde e habitação a aborígenes.
Num país liberal-democrático como a Austrália, onde se priorizam primeiramente os “nacionais” para somente depois os “aborígenes”, a Healhabitat como entidade pequena obteve um êxito bastante expressivo, em que pese efêmero, na participação do desenho da política pública e sua implementação (dentro da clássica pergunta who gets what ou realmente who thinks what).
Como existem situações similares em outros países (Nova Zelândia, Canadá, EUA), seria interessante o estudo de todos os pontos levantados neste trabalho de Allan McConnell, Liam Grealy e Tess Lea (2020), inclusive para o Brasil em relação aos nossos povos originários e os remanescentes de quilombos. Daí termos trazido o presente estudo de caso para fins comparativos com futuras iniciativas da política pública nacional.
Considerações finais – Inexistem dúvidas de que a participação de uma entidade sem fins lucrativos, bem como qualquer organização que represente a sociedade civil, é muito importante para conferir legitimidade às decisões de alocação de recursos públicos.
Nas sociedades complexas, modernamente, é imperioso que o Estado trabalhe intensamente em políticas públicas essenciais como combate à fome, melhoramento da educação, segurança pública, meio ambiente, defesa de grupos minoritários, sem alijar das discussões as instituições da sociedade civil interessadas ou afetadas pela política.
No Brasil, houve experiências louváveis de sucesso da participação social na formulação das políticas públicas no desenho do orçamento nas cidades que adotaram o orçamento participativo, que, embora tenha tido exemplos de sucesso anteriores, ficou consagrado nas iniciativas tomadas na cidade de Porto Alegre e no estado do Rio Grande do Sul.
*Fábio Lucas de Albuquerque Lima, Procurador-Chefe da Previc