Entrevista: “É preciso que o TCU reconheça a limitação do seu papel”

Prof. Carlos Ari Sundfeld - fotógrafo Fernando Siqueira

É chegada a hora da Justiça decidir, afirma o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor titular de Direito da FGV-SP e consultor em Direito Público. Ele é autor do parecer jurídico, contratado pelo Sindapp, que trata da (in)competência dos tribunais de contas para fiscalizar as entidades fechadas de previdência complementar.

O parecer integra o material encaminhado às associadas do Sindicato e da Abrapp para as Assembleias que serão realizadas na tarde de hoje (04/11). As associadas irão deliberar sobre a propositura de Ação Coletiva em face ao Tribunal de Contas da União, frente ao avanço fiscalizatório sobre as entidades fechadas. Confira a entrevista com o professor:

Abrapp em Foco: O seu parecer destaca que as EFPC, mesmo quando ligadas a empresas estatais, não podem ser consideradas parte da administração pública. Assim, estão fora da competência dos tribunais de contas. Poderia explicar essa questão?

Carlos Ari Sundfeld: As EFPC não têm, nem com as empresas estatais nem com o Estado em geral, vínculos estáveis e orgânicos que caracterizam as entidades estatais. A relação que existe entre EFPC e entidade estatal, se a empresa estatal for patrocinadora, é uma relação de outro tipo. Mas com certeza não é um vínculo estável e orgânico – quer dizer, a EFPC não faz parte da administração pública. Esse é o elemento-chave para definir as regras que a EFPC segue.

A EFPC não pode ser submetida às regras que são típicas das entidades estatais; e sim às regras típicas de entidades do setor privado, que são submetidas à regulação e fiscalização por órgãos setoriais. E, ainda no caso das EFPC, existe todo um sistema de regulação da previdência privada, feito por órgãos da administração pública federal. Então, esse é o elemento central e básico para começar essa discussão. Mas existem outros.

O parecer jurídico esclarece outra questão importante: a natureza dos recursos administrados pelas EFPC ligadas a estatais.

Esse é outro ponto-chave nessa discussão. Porque é o que preocupa os tribunais de contas: a boa gestão dos recursos. Mas esses recursos já têm a sua gestão fiscalizada por órgãos setoriais de regulação participantes da estrutura da administração federal. Então, não há dúvida de que já existe fiscalização pública sobre esses recursos.

A tentativa de atuação dos tribunais de contas não é porque falte regulação; ela existe e é bem-feita. O Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu, no entanto, que deveria participar porque esses recursos seriam públicos. O fato é que do ponto de vista jurídico esses recursos não são públicos, e do ponto de vista fático da proporção, eles também não são.

Poderia explicar?

Os recursos da EFPC advêm em parte dos patrocinadores, que podem ser entidades estatais. Mas o fato de o recurso se originar no caixa de uma empresa estatal não faz com que ele seja público para sempre. Os recursos que uma estatal repassa para pagamento das obrigações aos seus empregados, assim que saem dos cofres da empresa estatal deixam de ser públicos; e passam a ser recursos privados de cada um de seus empregados.

Assim, os recursos que a empresa estatal passa para a EFPC, para compor com as contribuições dos empregados, a fim de constituir uma base para garantir o pagamento de benefícios para eles, deixaram de ser da empresa estatal quando saíram dela. Esse é um ponto fundamental. Quer dizer, a origem nos cofres da empresa estatal não determina a natureza jurídica de recurso público daquilo que é administrado pela EFPC. Da mesma maneira que os salários dos empregados, depois que saíram da empresa estatal, não são mais recursos dela; são recursos privados que serão, evidentemente, administrados segundo os critérios de cada um a quem couber administrar.

E tanto (os recursos geridos pelas EFPC) não são recursos públicos que estão sujeitos a um modelo de administração que foi concebido pela lei setorial com cuidados de governança muito específicos, que não tem nada a ver com a administração pública.

O modelo de governança das EFPC reforça esse argumento?

A governança das EFPC é muito específica e não corresponde à governança de nenhuma entidade pública. E a lei, ao fazer regras sobre a governança das EFPC, tomou os cuidados necessários para que houvesse algum tipo de influência do patrocinador e dos beneficiários nessa governança, como é correto acontecer, e ocorre no mundo. Portanto, o tribunal de contas não tem papel nessa matéria; ele é um estranho. O que ele tem que fiscalizar é a empresa estatal.

Além de ser estranha nessa relação, a intervenção dos tribunais de contas pode gerar risco sistêmico para as entidades fechadas?

Tanto o TCU como outros tribunais de contas (estaduais e municipais) fazem solicitações sobre diferentes assuntos para os gestores públicos. Ao querer fazer isso com uma entidade que não está sujeita à sua fiscalização, o tribunal de contas vai gerar contradição, conflito e insegurança em relação à atuação daqueles órgãos que têm essa competência específica – sejam os órgãos internos da EFPC, sejam os órgãos incumbidos da fiscalização administrativa. E isso é muito perigos, porque estamos tratando de um assunto muito sensível. Qualquer paralisia ou constrangimento decisório pode gerar perdas muito graves para o sistema. Então, é preciso que o TCU entenda isso.

O TCU está acostumado a interferir na administração pública e causar paralisias que são difíceis de medir. Então, ele não consegue avaliar como suas interferências podem ser negativas em órgãos públicos que intervém; ele supõe que essa interferência é boa. Só que neste caso, vai ser muito mais fácil avaliar ao se perceber problemas de gestão nas entidades causados pela indevida interferência de um órgão que não tem competência técnica – embora sejam pessoas idôneas e cheias de boa vontade – mas ele não tem competência técnica e gera insegurança, conflito e contradições. É preciso haver unidade de comando na regulação. Quem tem que fiscalizar as EFPCs são os órgãos administrativos criados para esse fim, como a Previc, que tem poderes fortes para isso.

Quais outros riscos podem advir dessa interferência?

O que o TCU acabará fazendo, se continuar nessa tendência, é enfraquecer a Previc. E enfraquecer a Previc é colocar sob risco a regulação. Como aliás tem acontecido; o TCU tem interferido em algumas agências reguladoras, enfraquecendo as agências e não as fortalecendo. E ao interferir diretamente nas EFPC, ele vai enfraquecer indiretamente o órgão supervisor setorial que é a Previc – além de causar problemas importantes e custos desnecessários para essas entidades.

Então, é preciso que o TCU reconheça a limitação do seu papel. A Constituição e as leis não previram sua intervenção nessa relação porque ela não é necessária. E é preciso que ele observe as normas legais que limitam a sua competência.

Em sua visão como jurista, há regramento e material jurídico suficiente para uma decisão favorável às EFPC nos tribunais superiores?

Acredito que os tribunais brasileiros, o Supremo Tribunal Federal em particular, já têm amadurecimento sobre o perigo da expansão dos tribunais de contas para áreas que não são de sua competência. No caso da previdência complementar fechada, esse risco é muito mais grave, justamente porque tribunais de contas estaduais – que possuem problemas que o TCU não tem, inclusive de governança interna – vão começar a interferir nas entidades de previdência e colocá-las sob risco ainda maior.

Então, acredito que o Judiciário brasileiro é sensível a isso, a discussão está madura e é chegada a hora de tomar decisões. A Justiça precisa decidir. E isso não significa limitar o TCU – é algo que precisa ficar claro – a Justiça não vai limitar esse órgão. O que a Justiça fará é permitir que o TCU tenha clareza quanto aos limites da sua atuação, que já estão no Direito, na Constituição, nas leis. Então, não se trata da Justiça diminuir o TCU, mas assumir o seu papel de dar segurança ao órgão quanto ao limite de suas competências.

O STF é a instância adequada para fazer essa definição e ele está preparado. Ao tomar posse, o Ministro Luiz Fux (atual presidente do STF) insistiu em um ponto que tem sido reiterado em suas decisões: a necessidade de se respeitar a autonomia dos controlados. No caso das EFPC, que nem são controladas pelo TCU e tribunais de contas estaduais, é questão de aplicar esse mesmo raciocínio. Está na hora de cada um observar os limites da sua competência constitucional e das leis.

Até porque diante da situação fiscal brasileira, ter gastos e esforços do Estado duplicados para essa fiscalização não seria algo contrário ao bom uso do próprio patrimônio público?

Gastar recursos à toa, fiscais e auditores, já seria algo grave. Mas duplicam-se os esforços, gastam-se recursos preciosos, com o perigo de desequilibrar o sistema de previdência privada. Que é um sistema cuja governança já está madura, e que avançou muito, tem um regulador adequado, e que não pode ser desequilibrado pela interferência de órgãos fortes que não tem nada a fazer nesse assunto. É disso que se trata.

O sr. gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

O TCU tem um grande papel na fiscalização da administração pública, no qual já tem muito trabalho. O País confia nele para isso. Ele não precisa, não pode e não tem competência para ir além disso – que já é tarefa suficiente.

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