Por Matheus Corredato Rossi – Um dos dispositivos que tem gerado grande debate na atual norma prudencial dos investimentos das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), é a exigência de alienação das propriedades diretas de imóveis em um prazo de 12 anos ou a transferência destes para fundos de investimento imobiliário (FII).
Trata-se de regra prevista no art. 37, §5º da Resolução CMN nº 4.661/18, introduzida a partir da redefinição do segmento imobiliário, que passou a permitir, diretamente, investimentos apenas em “papéis com lastro imobiliário” (FII, CRI e CCI) e não mais em “tijolo” (imóveis).
A Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (ABRAPP) e um grupo de EFPC associadas têm defendido mudança na regra da alienação compulsória, havendo inclusive uma sinalização por parte da PREVIC em relação a estudos e projeções sobre o tema.
Mas, por que essa regra acabou causando um desconforto ao sistema da previdência complementar?
Para tentar responder a esta pergunta, é importante relembrar sucintamente o processo evolutivo da regulação dos investimentos das EFPC.
Logo após a edição da Lei nº 6.435/76, as normas prudenciais editadas sucessivamente pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), determinaram às EFPC aplicações compulsórias em determinados emissores. Nessa linha, havia determinação expressamente para aplicações mínimas por parte das EFPC em letras e obrigações do Tesouro Nacional e em títulos e valores mobiliários de emissão de “companhias abertas controladas por capitais privados nacionais”.
O resultado dessa intervenção estatal acabou sendo desastroso, pois além de resultar em baixa rentabilidade dos recursos garantidores dos compromissos assumidos com os participantes e assistidos, ainda colocava em risco o patrimônio dos planos de benefícios.
A situação foi mais grave ainda para algumas EFPC que tiveram que se desfazer de ativos com retornos satisfatórios para aplicar o resultado em modalidades impostas pelo CMN de forma contrária ao interesse dos planos.
Não bastasse esse dirigismo estatal por meio do CMN, o sistema presenciou a edição da Lei nº 8.177/91 que, em seu art. 29, equiparou as EFPC às instituições financeiras. Mas uma vez, o objetivo era interferir na administração das EFPC, para direcionar os recursos garantidores segundo o interesse financeiro do Governo Federal.
No âmbito da previdência complementar, o objetivo da ação estatal sempre foi voltado a proteger os interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios, buscando assegurar padrões de segurança econômico-financeira, bem como a preservação de liquidez e solvência, conforme determinava à época a Lei nº 6.435/76, reforçada na atual Lei Complementar nº 109/01 (LC 109/01).
Todavia, a pretendida equiparação em nada se aproximava da referida regra matriz. Na prática, o que se viu foi uma tentativa de sujeitar as EFPC ao comando legal que obrigava, à época, as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (BACEN), a adquirir os chamados “Certificados de Privatização”. Referidos títulos não tinham liquidez e apresentavam baixa rentabilidade em relação a outras modalidades de investimento da época.
Felizmente, a eficácia do art. 29 da Lei nº 8.177/91 foi suspensa por meio de medida cautelar deferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 504-9/600 (ADIN), promovida pelo Procurador-Geral da República a partir de uma louvável e tempestiva representação encaminhada pela ABRAPP.
No mérito, a referida ADIN acabou não sendo julgada por perda do objeto, tendo em vista a edição da LC 109/01, a qual acabou colocando uma “pá de cal” em qualquer hipótese de investimentos compulsórios das EFPC, estabelecendo no §2° do art. 6º que: “É vedado o estabelecimento de aplicações compulsórias ou limites mínimos de aplicação”.
A narrativa histórica acima é fundamental para que se possa compreender por que a regra dos 12 anos para os imóveis vem causando um desconforto ao sistema da previdência complementar.
Desde à edição da LC 109/01, todas as normas prudenciais sempre respeitaram a regra proibitiva dos investimentos compulsórios, focando-se na fixação de diretrizes para o futuro das carteiras das EFPC e respeitando-se os investimentos realizados em atenção ao princípio do ato jurídico perfeito.
Todavia, a nosso ver, a Resolução CMN 4.661/18, especificamente a previsão do art. 37, §5º, acabou “avançando o sinal” ao repristinar o conceito inadequado de movimentação compulsória nas carteiras das EFPC.
Não se desconhece a preocupação do CMN em proteger participantes e assistidos a partir da preservação da liquidez dos planos de benefícios, dando-lhes segurança e solvabilidade.
Porém, o que se percebe na referida regra é um dirigismo indevido, com o CMN tentando se substituir à gestão privada da EFPC. Na prática, o CMN pretendeu ditar-lhes o comportamento em relação a investimentos imobiliários consolidados (estoque), muitos deles com rentabilidade satisfatória, sem levar em conta os preceitos constitucionais da liberdade de iniciativa de que desfrutam (art. 1º, IV e art. 170, caput) e a garantia à propriedade privada (art. 5º, XXII).
Ora, a regra proibitiva do §2° da art. 6º da LC 109/01 veio justamente para assegurar que os gestores de planos previdenciários possam avaliar livremente as condições de cada investimento e desinvestimento sob a ótica do interesse dos participantes e assistidos, dentro de uma linha de prudência, evitando-se riscos e gastos desnecessários.
Na aplicação dos recursos garantidores, as EFPC já estão obrigadas, invariavelmente, a considerar na avaliação dos seus compromissos atuariais junto aos seus participantes e assistidos, os aspectos de solvência e liquidez dos ativos garantidores (LC 109/01, art. 18, §3°).
O CMN ao editar as diretrizes aos investimentos das EFPC mediante “delegação” da LC 109/01 (art. 9º, inc. I), deve buscar o equilíbrio entre as políticas previdenciária e de desenvolvimento social e econômico-financeiro (art. 3º, inc. II) e a proteção dos direitos dos participantes e assistidos (art. 3º, inc. VI).
Nesse sentido, a opção do regulador de privilegiar modalidades de investimentos em títulos e valores mobiliários com lastro em ativos imobiliários (papéis) ao invés de investimentos diretos (tijolo), é perfeitamente legítima e compatível com a sua competência orientadora. A propósito, esse caminho vem sendo desenhado já há algum tempo, tendo sido iniciado com a primeira restrição no segmento imobiliário referente à atuação da EFPC como incorporadora imobiliária.
Entretanto, ao estabelecer a compulsoriedade do desinvestimento do estoque de propriedades imobiliárias, a nosso ver, o CMN foi muito além da sua competência delegada para editar “diretrizes” para a aplicação dos recursos garantidores dos planos de benefícios.
Vale ressaltar que as EFPC têm enormes responsabilidades e obrigações de administração e gestão dos ativos (contribuições mensais, que formam as reservas garantidoras) para efetuar o pagamento do passivo previdenciário (benefícios) no futuro.
A viabilidade de manutenção dos imóveis em períodos relacionados aos compromissos dos planos de benefícios é uma tarefa dos gestores da EFPC sujeita evidentemente ao acompanhamento pelo órgão fiscalizador, porém sem a necessidade de convivência com regras compulsórias que, na prática, acabam criando condições artificiais de preço e demanda, como é o caso do prazo de 12 anos para alienação dos imóveis.
Portanto, não há dúvidas de que o tema merece ser revisitado, levando-se em conta o avanço legislativo e fiscalizatório que vem exigindo, como parâmetro de uma gestão prudente da EFPC, uma atuação pronta, idônea, jurídica e calcada em aprofundados conhecimentos técnicos dos meandros que suportam os planos previdenciários e seus investimentos.
*Sócio do Escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva e Rodrigues Advogados. Mestre em Direito pela PUC-SP. Foi Consultor Jurídico Adjunto da Previ (2003-2008) e Diretor Jurídico do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC (2010-2019)