Artigo: Investimentos em um cenário de volatilidade global e local – por Luis Afonso Lima, da Mapfre Investimentos

É fato que a economia global se beneficiou nas últimas décadas de um processo acelerado de globalização.  A admissão da China na Organização Mundial do Comércio em 1997 propiciou um bônus desinflacionário de longa duração. A inclusão de milhões de novos trabalhadores com baixos salários, juntamente com desenvolvimentos tecnológicos aplicados à produção de bens e à prestação de serviços favoreceram ganhos de escala, com benefícios aos preços ao consumidor em economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Não por acaso que bancos centrais de diversos países puderam se dar ao luxo de reduzir suas taxas de juros para níveis inéditos. Chegou-se a levantar a hipótese de que a inflação estaria morta.

Alguns eventos na segunda metade da última década deram indícios de que tal hipótese poderia estar incorreta. As perdas de empregos em países desenvolvidos afetados pela concorrência pela mão-de-obra de baixo custo favoreceram movimentos de defesa de interesses nacionais. Esse foi o caso do Brexit no Reino Unido em 2016 e da política externa norte-americana de Donald Trump a partir de 2017. Aumentos de tarifas de produtos importados, valorização do Buy American e a retirada dos Estados Unidos das negociações de acordos de comércio eram parte da agenda America First.  Tanto no Reino Unidos quanto nos Estados Unidos a intenção era proteger a mão-de-obra local da concorrência estrangeira e dos efeitos da globalização.

Ventos contrários à globalização ganharam força com dois eventos nos anos seguintes. A evolução da pandemia da Covid-19 fomentou disputas intensas entre países por medicamentos, respiradores e até máscaras. Ficou claro que cada país deveria ter políticas próprias que garantissem o fornecimento de produtos e insumos em prol da saúde pública das suas populações. O conflito na Ucrânia deixa ainda mais claro que o mesmo raciocínio vale para commodities. Sanções a exportações russas aumentam o risco ao fornecimento global de petróleo, fertilizantes, grãos, como milho e trigo, além de diversas commodities metálicas. Diante disso, políticas nacionais de segurança alimentar e energética devem ganhar espaço em detrimento da globalização.

Os riscos à globalização não terminam por aí. As sanções sem precedentes impostas pelos países ocidentais podem ter efeitos de longo prazo nas relações econômicas bilaterais. Primeiro, pode-se esperar aprofundamento dos fluxos de comércio e investimento entre Rússia e China. Ao mesmo tempo, o contrário poderá ocorrer nas relações entre Europa e Rússia. Finalmente, é possível que os fluxos de comércio e de investimento entre EUA e China também sejam afetados. Em outras palavras, a globalização poderá ceder espaço crescente para relações fragmentadas e locais, com o desenvolvimento de fornecedores regionais em detrimento das cadeias globais de fornecedores.

Esses movimentos nos próximos anos terão reflexos na inflação global. Assim como esta foi beneficiada pelos avanços da globalização ao longo das últimas décadas, o contrário pode ser esperado daqui para frente. A evolução dos preços deixará de ser beneficiada pela apropriação de ganhos de produtividade e pela inclusão de milhões de trabalhadores com baixos salários nas cadeias globais de suprimentos. Os preços globais ao produtor e ao consumidor deverão ser pressionados por custos derivados do desenvolvimento de novos fornecedores de bens e de novos prestadores de serviços com menores ganhos de escala. Em paralelo, a menor disponibilidade internacional de commodities cobrará seu preço.

Essa mudança de tendência da inflação global trará novos desafios para as políticas monetárias de diversos países. Nos últimos dois anos o desafio de boa parte dos bancos centrais foi estimular economias abatidas pelos efeitos econômicos da pandemia. O desafio a partir de agora será combater a elevação de preços decorrente do aumento de custos. Diga-se de passagem, políticas monetárias pouco ou quase nada podem fazer diante de choques de oferta. Estas têm como propósito central atuar sobre as condições de demanda. Aumentos de taxas de juros pouco ou nada podem fazer se os aumentos de preços derivam da escassez de commodities ou de mão-de-obra. A busca pela sintonia fina entre a tentativa de conter a inflação de custos e a de continuar a recuperação cíclica pós-pandemia será um teste para as autoridades monetárias. Sem dúvida, um teste com elevado potencial de volatilidade.

Essa volatilidade já tem alguns candidatos em economias desenvolvidas. Talvez seja inevitável alguma correção nas bolsas de valores norte-americanas. Vale comentar que a relação entre o preço e o lucro das empresas que compõe o índice S&P 500 é 12% superior à mediana deste índice nos últimos 10 anos. Isso favorece a expectativa de realização dos preços de ativos de renda variável. Em paralelo, vale atentar para preços de imóveis em economias desenvolvidas. O longo período de taxas de juros baixas ou negativas favoreceram aumentos de preços de imóveis para níveis já superiores aos observados antes da crise do subprime. Uma eventual realização de preços de imóveis nessas economias poderá ter reflexos além do mercado imobiliário.

Esse quadro não é neutro do ponto de vista da economia brasileira. Por um lado, estamos entre os principais exportadores mundiais de commodities. Somos o maior exportador mundial de soja e o segundo maior de ferro-gusa. Isso significa potencial para que exportadores brasileiros se beneficiem da escassez desses produtos. Esse benefício pode ocorrer tanto por conta de preços internacionais mais elevados dessas commodities, como pelo aumento da quantidade exportada. Ou por ambos esses fatores.

Por outro lado, a normalização de políticas monetárias nas economias avançadas deve resultar em acomodação do ritmo de crescimento econômico global. Isso coloca em risco a recuperação do crescimento também em economias emergentes, inclusive na brasileira. Indicadores de atividade econômica brasileira confirmam um quadro de percalços por conta da combinação de acomodação das concessões de crédito, renda real em queda e baixa confiança de empresários e consumidores. Além do efeito na atividade econômica, há a inflação. Preços de commodities elevados pressionam a inflação e reduzem a renda. Neste caso, o crescimento ainda pode ser contido pelo aperto da política monetária.

Em resumo, temos pela frente dois desafios. O primeiro desafio será o de maximizar as oportunidades derivadas da escassez de commodities para o comércio exterior brasileiro. O segundo desafio será o de minimizar os efeitos da acomodação do crescimento econômico global e do recrudescimento da inflação ao atacado e ao consumidor. Não se trata uma tarefa trivial, mas já passamos por experiência semelhantes. É para essas experiências que nossas atenções deverão se voltar.

*Head de Análise da Mapfre Investimentos.

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