Em 2 de outubro de 2023, o Ministro Cristiano Zanin, em decisão monocrática, indeferiu pedido cautelar do Sindicato Nacional das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Sindapp) para que o Supremo Tribunal Federal (STF) afastasse a fiscalização direta do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), que possuem patrocinadores estatais federais (MS 37.802-DF).
A recente decisão se baseia em dois argumentos centrais para o indeferimento da medida cautelar requerida: (i) os arts. 70 e 71 da Constituição Federal, que determinariam uma competência do TCU sobre o “dinheiro público” repassado a pessoas jurídicas privadas, no caso, para os fundos de pensão; e (ii) o art. 25 da Lei Complementar nº 108/2001, que determina aos próprios patrocinadores estatais o dever de exercer a fiscalização sobre as entidades e planos.
A atuação do TCU em face das EFPC se insere em um contexto mais amplo do fenômeno da expansão da competência dessa Corte de Contas a partir de suas próprias decisões e normativos. Esse fenômeno pode ser dividido em dois movimentos ou tendências. O primeiro, especialmente direcionado às agências reguladoras, pôs em xeque a autonomia fiscalizatória e reguladora desses entes a partir da emissão sistemática de recomendações e determinações a essas autarquias. O TCU partia de um diagnóstico de que havia deficiência técnica na atuação das agências e, aprofundando sua análise (normalmente em processos de auditoria operacional), acabava por se substituir ao regulador, obrigando as agências a dirigir comandos aos agentes econômicos regulados, revelando uma postura de pouca deferência à atuação técnica das agências reguladoras. Essa tendência pode ser traduzida como uma espécie de “expansão vertical”.
A ampliação de atribuições da Corte de Contas também se faz sentir em outro plano: numa vertente horizontal. Cada vez mais, o TCU se considera competente para fiscalizar novas categorias de jurisdicionados. Trazemos alguns precedentes de fiscalização: (i) das seguradoras, no caso do seguro DPVAT (Acórdão-TCU Plenário nº 2609/2016, Rel. Ministro Bruno Dantas, e nº 2765/2022, Rel. Ministro Antonio Anastasia); (ii) das “semi-estatais” (Acórdão-TCU Plenário nº 2.706/2022, Rel. Ministro Bruno Dantas); e (iii) de outros entes já regulados por outras instâncias de controle e fiscalização, como a Comissão de Valores Mobiliários-CVM e, no caso em comento, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar-PREVIC.
Particularmente em relação a este último caso, percebe-se, de certa forma, uma confluência das duas vertentes expansionistas, o que se deu a partir do seguinte itinerário. Em um primeiro momento, o TCU se limitou a exercer a fiscalização indireta (ou de segunda ordem), na qual a Corte de Contas TCU atua: (i) sobre o ente estatal patrocinador, que possui o dever de supervisionar a entidade de previdência que patrocina (na forma do art. 25 da Lei Complementar 108/2001); ou (ii) sobre os procedimentos adotados pelo ente supervisor e fiscalizador, a Previc.
Cada vez mais, o TCU tem aprofundado a análise, muitas vezes ingressando no próprio mérito da gestão dos fundos de pensão, nitidamente, com expansão de suas atribuições. É dizer, o TCU tem solicitado informações, empreendido auditorias, julgado e, eventualmente, aplicado sanções, exercendo uma fiscalização de direta (ou de primeira ordem).
A expansão da atuação de primeira ordem do TCU em face dos fundos de pensão, tornando-os sujeitos a sua jurisdição, gera, a partir dos precedentes indicados antes, duas possíveis e relevantes consequências: (i) a necessidade de essas entidades observarem os princípios da Administração Pública, tal como alguns precedentes dessa Corte Federal têm indicado; e (ii) a criação de uma série de obrigações destinados às entidade fechadas de previdência a fim de atender as auditorias feitas pelo TCU, o que pode implicar, no limite, a exigência de que prestem contas ao Tribunal diretamente. Essas consequências, por sua relevância e magnitude, merecem um olhar mais crítico e aprofundado.
Sobre a primeira consequência – a observância dos princípios da Administração Pública –, destaca-se um primeiro ponto de reflexão. Esses princípios se revestem de alto grau de indeterminação. Sua operacionalização depende de mediação normativa ou mesmo jurisprudencial, que, não raras vezes, deixa de atender a parâmetros de coerência, colocando o gestor em um cenário de insegurança, diante do risco de estar incorrendo em erro grosseiro, ao não observar a jurisprudência do TCU.
As entidades fechadas já estão sujeitas à tutela fiscalizadora estatal e preceitos regulamentares. Constata-se, de plano, a atuação da Previc, com expressas atribuições de supervisão e fiscalização previstas na Lei nº 12.154/2009 e os deveres decorrentes do mencionado art. 25 da Lei Complementar nº 108/2001. Ademais, as entidades são abrangidas pela Lei nº 7.492/86 (Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Federal), que determina a aferição por parte do Ministério Público Federal dos comportamentos relacionados à gestão de investimentos.
Lembremos, ainda, que o art. 202, § 1º da Constituição Federal dispõe que o “participante de planos de benefícios de entidades de previdência privada [terá] o pleno acesso às informações relativas à gestão de seus respectivos planos”. Esse comando está desdobrado nas Leis Complementares nº 108/2001 e nº 109/2001, que impõem a inserção dos participantes na gestão direta das entidades de previdência fechada, com presença obrigatória no Conselho Deliberativo e no Conselho Fiscal.
Assim, coloca-se desnecessária a submissão do fundo de pensão com patrocinador estatal federal a mais uma esfera de regulação e fiscalização, que pode ser mesmo prejudicial, porque cria uma sobreposição de fontes de controle sobre essas entidades, no que a doutrina especializada vem chamando de accountability overload. A consequência deste estado de coisas é que o gestor acaba adotando condutas menos eficientes em cenários de tomada de decisão em situação de incerteza, em razão da dúvida a respeito dos parâmetros de controle que serão futuramente adotados, trazendo evidente prejuízo para as partes contribuintes: participantes, assistidos e patrocinadores estatais.
Neste sentido, com o maior respeito ao Ministro Zanin, o STF parte de uma premissa equivocada. A recente decisão do STF cita os aportes patronais de mais de R$ 9,00 bilhões feitos por entes estatais para custeio de déficits. De fato, há uma preocupação com tais desembolsos de recursos de estatais federais, que atrai a necessidade de fiscalização. Mas nem sempre o adágio “quanto mais controle, melhor” se revela verdadeiro.
A solução não deve ser buscada na multiplicação de controladores, mas na correta exegese do próprio art. 25 da Lei Complementar nº 108/2001, citado na referida decisão monocrática. Este dispositivo afirma que as competências de fiscalização da Previc “não eximem os patrocinadores [estatais] da responsabilidade pela supervisão e fiscalização sistemática das atividades das suas respectivas entidades de previdência complementar”.
Dentro do sistema de competências constitucionais, deve o Tribunal de Contas exercer uma espécie de autocontenção e limitar-se à fiscalização de segunda ordem, que determina que seja examinado se a Previc exerceu as suas competências legais de forma adequada e se o ente estatal patrocinador efetivou o seu dever de supervisionar a EFPC.
O alcance correto do art. 25 da Lei Complementar 108/2001, invocado como fundamento na decisão do STF, precisa ser melhor compreendido. Muito embora tenha sido utilizado como justificativa para legitimar uma fiscalização de primeira ordem, a sua razão de ser é inversa, i.e., explicitar a possibilidade do exercício de fiscalização de segunda ordem pelo TCU, atuando sobre os patrocinadores estatais.
Nossa longa atuação no segmento das entidades fechadas nos faz crer que essas pessoas jurídicas e seus gestores acham natural que exista cuidadosa fiscalização sobre a sua atividade de gestão de recursos de terceiros. Isso é visto com naturalidade e bem aceito, sendo inegável o papel central que a fiscalização feita precipuamente pela Previc representa para o aprimoramento e avanço das práticas de gestão. O ponto central, portanto, reside na sobreposição de instâncias fiscalizadoras e na indefinição dos parâmetros que devem ser observados.
Já a respeito da segunda consequência do reconhecimento da competência do TCU para fiscalizar diretamente os fundos de pensão, qual seja, a compulsoriedade de prestar contas e se submeter a auditorias, inegável que esta obrigação implica o aumento dos custos dessas entidades para atender ao compliance (com o “olhar” de gestão pública) demandado pela Corte de Contas.
Nada obstante a louvável intenção do TCU, isso acaba gerando um efeito colateral imprevisto. É que esse acréscimo de custos fatalmente vai ser experimentado por patrocinadores, participantes e assistidos.
As EFPC são pessoas jurídicas de direito privado, tal como determinam o art. 202, caput da Constituição Federal e o art. 1º da Lei Complementar 109/2001. Os valores dos patrocinadores públicos aportados na entidade de previdência passam a se vincular exclusivamente aos participantes, pessoas naturais. Todos os montantes devem ser usados para pagar benefícios previdenciários e, no limite de liquidação do plano ou da entidade de previdência, as reservas garantidoras existentes serão distribuídas somente para os participantes e assistidos, tal como prevê o art. 50 da Lei Complementar nº 109/2001. Não haverá devoluções para os patrocinadores estatais.
A lógica subjacente a essa estrutura jurídica está na desoneração do ente público, que deixa de estar responsável pelos pagamentos de complementações de aposentadorias e pensões. Esse ônus se desprende da tutela estatal e passa a ser de um privado, que não possui obrigações de natureza pública. Essa é uma forma de ajuste perene das contas públicas, pois bem sabe-se o imenso ônus que é o custeio do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos nas três esferas da federação.
Por fim, há ainda o risco de se estar caminhando para “publicizar” a previdência complementar dos servidores e empregados públicos, num modelo utilizado na Argentina. Lá, entendeu-se que a previdência dos servidores públicos deveria abolir o modelo privado complementar e o Tesouro do estado nacional passou a prover benefícios integrais para essas categorias. A atual situação econômica de nosso país vizinho indica que houve erros graves no passado, dentre os quais o modelo de previdência de servidores e empregados públicos, que sufocam as contas públicas.
Esperamos que a posição do Ministro Zanin possa ser objeto de mais profundas reflexões, pois trata-se de tema complexo, e seja revista ainda de forma monocrática ou quando de sua apreciação pelo colegiado, corrigindo-se o equívoco do até agora decidido.
*Flávio Martins Rodrigues é sócio sênior do Escritório Bocater e Mestre em Direito
Thiago Araújo – sócio do Escritório Bocater e Mestre e Doutor em Direito