Artigo: O lado humano da governança – Por Alessandra Silva e Sílvio Rangel, da Mercer*

Alessandra Silva

Não há um conceito único para governança corporativa, e ele oscila entre definições que privilegiam aspectos formais e aquelas que privilegiam o aspecto sistêmico. Por exemplo, governança corporativa pode ser entendida como “o conjunto de normas, leis, regulamentos, públicos e privados, que organizam, direcionam e comandam as relações de uma empresa”, ou também como “o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, envolvendo os relacionamentos entre os sócios, conselho de administração, diretoria, órgão de fiscalização e controle e demais partes interessadas”.

O aspecto regulatório da governança, no Brasil e no mundo, não tem sido suficiente para enfrentar os desafios e nem os escândalos corporativos, e a ênfase humana e comportamental da governança nos parece relegada a um segundo plano, submersa e invisível.

Tal qual um iceberg, enxerga-se apenas a parte visível da governança, como leis, normas, regulamentos e procedimentos estabelecidos, acompanhados detalhadamente por exaustivos checklists. Mas a parte submersa da governança, as relações não escritas, a dinâmica real do relacionamento humano, nem sempre são visualizadas ou tratadas.

Governança não se faz só com documentos e fluxos de processos. Ela se faz com pessoas! E sob a plácida superfície de normas, regulamentos, códigos e estruturas de governança figura o lado submerso e humano da governança, nem sempre racional, com pessoas com seus interesses, vieses e capacidades técnicas, aglutinados por uma estrutura que adquire dinâmica e vida próprias.

Alguns aspectos formais visíveis da governança – Nas EFPCs a governança deve ser composta, no mínimo, por conselho deliberativo, conselho fiscal e diretoria-executiva, e suas práticas de governança, gestão e controles internos devem ser diferenciadas, adaptadas ao porte, complexidade e aos riscos inerentes aos planos de benefícios por elas administrados.

A composição do conselho deliberativo exige a representação de participantes na proporção mínima e 1/3 das vagas ou de 50% das vagas, conforme a natureza privada ou pública dos patrocinadores. Nessa composição, as entidades fechadas multipatrocinadas devem considerar o número de participantes vinculados a cada patrocinador ou instituidor, bem como o montante de seus respectivos patrimônios.

Entidades sistemicamente importantes devem constituir Comitês de Auditoria. As entidades devem designar administrador ou comitê responsável pela gestão de riscos, administrador responsável pela gestão, alocação e supervisão dos investimentos – AETQ, e administrador responsável pelos planos de benefícios – ARPB.

Os membros da diretoria-executiva e dos conselhos podem ser remunerados. É imprescindível a competência técnica e gerencial compatível com a complexidade das funções exercidas em todos os níveis da administração das EFPCs, e os conselheiros devem atender aos requisitos legais e normativos em relação à capacidade técnica, conforme processo formal da PREVIC, que abrange a habilitação, certificação e qualificação.

As responsabilidades e obrigações do conselho deliberativo estão dispersas por toda a legislação, envolvendo gestão de riscos e controles internos, investimentos, combate à lavagem de dinheiro, hipóteses e premissas atuariais etc. A contratação de serviços especializados de terceiros não exime os integrantes dos órgãos de governança das responsabilidades previstas em lei.

É recomendável que as EFPCs possuam código de ética e conduta. O Estatuto deve definir as atribuições, a composição, forma de acesso, duração e término dos mandatos dos membros dos órgãos estatutários. As EFPCs poderão ainda ter regimento interno para disciplinar suas reuniões ordinárias e extraordinárias.

Conselheiros e dirigentes, independente de indicação ou eleição, depois de empossados nos respectivos cargos, passam a representar a entidade e os planos de benefícios. As EFPCs multiplanos podem constituir comitês, de natureza deliberativa ou consultiva, para representar a diversidade dos planos.

Reflexões sobre a estrutura de governança das EFPC – A “pequena” amostra do ambiente normativo já nos dá uma ideia da complexidade e profundidade das discussões necessárias para estabelecer uma estrutura de governança adequada às particularidades de cada Entidade e dos planos que ela administra. E não existem soluções padrões.

Algumas das entidades hoje multipatrocinadas / multiplanos surgiram décadas atrás, inicialmente com um único plano e um único patrocinador. Mas o mundo mudou, e a velocidade de mudança está acelerando. Operações de saldamento e migração de planos, operações societárias dos patrocinadores, transferências de gerenciamento, retiradas de patrocínio, cisão de planos, incorporação de entidades, entre outras tantas ocorrências, tem introduzido um nível de complexidade adicional na governança dessas entidades, sem que, necessariamente, tenha sido acompanhada pela evolução ou ajustes no modelo e da estrutura de governança adotada.

No grupo das entidades complexas e com grande estrutura interna, o modelo de governança inicial, voltado para um único patrocinador e um único plano, pode não estar mais dando conta do novo ambiente. Conflitos entre as responsabilidades de gestão da entidade e os desejos dos patrocinadores e participantes do plano denotam uma crescente tensão entre os aspectos inerentes à governança da entidade (com foco na profissionalização, na melhor técnica e na eficiência dos custos e dos resultados), e aquilo que chamo de governança do plano (onde os direitos e deveres de patrocinadores e participantes estão representados, e precisam se harmonizar entre si, para que a EFPC possa geri-lo).

A unicidade da governança da EFPC (administradora) e do plano de benefícios (administrado) sob o manto único do conselho deliberativo pode ser um dos fatores que têm contribuído para a diminuição da eficácia dos conselhos em prever ou resolver problemas. A regulação até prevê, timidamente, uma alternativa para essa situação, via comitês por planos de benefícios com papel deliberativo ou consultivo. Algumas EFPCs já adotam esse modelo, com maior ou menor sucesso, dependendo da clareza na segregação de responsabilidades e da adoção de dinâmicas que agilizem seu funcionamento.

No grupo de entidades menores e menos complexas, encontramos situações de EFPCs com estrutura mínima, administração quase que totalmente terceirizada e envolvimento direto da alta administração dos patrocinadores na gestão da EFPC. Vítimas de seu próprio sucesso, construído pela dedicação voluntária de profissionais seniores dos patrocinadores, algumas dessas entidades vêm esbarrando na dificuldade de sucessão, pela falta de atratividade e o excesso de responsabilidade para exercício das funções nos colegiados. Jovens executivos já não se mostram interessados nessas posições, e discussões sobre processos de sucessão, seleção de profissionais, assessment, contratação de profissionais independentes ou até mesmo, em última instância, transferência de gerenciamento, começam a tomar corpo.

As duas situações acima, de EFPCs com portes e realidades totalmente distintas, mostram, sob diferentes perspectivas, a necessidade comum de enfrentar um debate sobre a evolução do modelo de governança das entidades.

Aspectos antes vistos como imutáveis, como a composição dos colegiados, a quantidade e o perfil dos conselhos, a forma de seleção e indicação de representantes tanto dos patrocinadores quanto dos participantes, a presença ou não de conselheiros independentes, a remuneração, a qualificação permanente dos conselhos, os regimentos internos dos colegiados e a escolha do presidente do conselho, precisam ser revisitados, ajustando-os às necessidades e objetivos dos patrocinadores e dos participantes, tendo como ponto de partida um diagnóstico, sobre o qual falaremos adiante.

O lado humano e frequentemente invisível da governança – Os aspectos comportamentais da governança, sua dinâmica de funcionamento, e existência de um ambiente propício para a identificação e solução de conflitos de interesses, a forma de condução das reuniões, a diversidade no perfil dos integrantes, entre outros fatores, são essenciais para o bom desempenho das atribuições do conselho deliberativo.

Conforme alerta Alexandre Gonçalves Silva, cada empresa tem suas particularidades, e não existem dois conselhos iguais, e nem parecidos. A dinâmica de cada conselho os leva a uma cultura própria, passíveis de patologias, que precisam ser identificadas e tratadas.

Exemplos de patologias seriam um conselho intrusivo que se envolva mais na operação do que na estratégia, conselheiros com dificuldade de ouvir ou de falar, posicionamento autoritário ou omisso do presidente de conselho, diretor executivo que domina o conselho, falta de envolvimento, comunicação inadequada, redes externas de relacionamento e objetivos não declarados pautando os votos, falta de abertura para posicionamentos divergentes, ambiente inadequado para solução de conflitos, entre outras.

Essas patologias de grupo são produtos da somatória de perfis e comportamentos individuais, e podem ser potencializadas por processos de governança incapazes de reduzir seus efeitos. Disfuncionalidades em conselhos não são raras, e nem ocorrem só em EFPCs, mas o alcance e a gravidade destas patologias produzem consequências relevantes sobre sua eficácia.

Avaliação dos conselhos como ferramenta de diagnóstico e evolução – De acordo com o código de melhores práticas de governança corporativa do IBGC, “a avaliação do conselho e dos conselheiros contribui para que o conselho seja efetivo, faz parte da prestação de contas do órgão e permite o aperfeiçoamento da governança da organização”.

Mudanças na governança não são um objetivo em si mesmo: elas são um meio para se atingir objetivos, que podem estar relacionados à melhoria na eficácia, crescimento ou sobrevivência da entidade, criação de mecanismos adequados para discutir e tratar os conflitos de interesse, melhorar a competitividade no mercado, aumentar a confiança, resolver aspectos de sucessão, permitir maior inovação ou flexibilidade, ou outros similares. Assim, antes que se opte por mudanças, um bom diagnóstico da governança é essencial, preferencialmente desenvolvido por profissional externo, que preserve o sigilo e a independência na avaliação e nas recomendações.

A primeira fase da avaliação de um conselho teria o foco no funcionamento do grupo, relacionados com a estrutura da governança, a composição dos colegiados, a dinâmica do conselho, exercício da autoridade e supervisão fiduciária, visão estratégia e de futuro, envolvimento do conselho, eficácia do conselho, processo decisório, relacionamento dos conselheiros entre si e com a diretoria, análise de risco, comunicação, integração de novos conselheiros, remuneração dos conselheiros, etc.

Esse diagnóstico inicial, desenvolvido a partir de entrevistas individuais e de aplicação de questionários, é customizado para a realidade e necessidades de cada entidade, e seu resultado envolve não só o diagnóstico, mas também recomendações para melhorias contínuas, melhorias de ganho rápido ou transformacionais. A partir desse diagnóstico, e das prioridades do próprio conselho, um plano de ação pode ser desenvolvido para enfrentar os pontos definidos como prioritários.

Essa abordagem inicial de avaliação do grupo, e não do indivíduo, permite quebrar o gelo e gerar confiança para a próxima etapa do diagnóstico, que envolve a avaliação individual dos conselheiros, utilizando-se de ferramentas como a autoavaliação, avaliação pelos pares, entre outros. Nessa etapa, o resultado desejado seriam planos de desenvolvimento individual que permitam a cada conselheiro enfrentar e superar os GAPs identificados.

A melhoria no processo de governança das EFPCs não é um processo rápido, nem simples, nem padrão. É um processo singular, evolutivo, cuja profundidade e ritmo devem ser ditadas pela própria EFPC, em função de suas escolhas estratégicas.

E a abordagem comportamental, tão negligenciada na governança, pode ser o detalhe faltante para solucionar as disfuncionalidades existentes, agregando efetividade ao aparato formal e normativo já existente, ou até modificando-o, conforme o diagnóstico realizado.

*Alessandra Silva (foto no topo) é consultora sênior de Previdência da Mercer Brasil. Possui mais de 25 anos de experiência profissional em previdência complementar. É graduada em Economia pela USP e Ciências Atuariais pela PUC- SP, com MBA pela FGV. Presidente do Conselho Fiscal do MercerPrev, possui certificação do ICSS.

Silvio Rangel_Mercer*Silvio Rangel é consultor associado da Mercer Brasil, com 39 anos de experiência profissional, dos quais 15 anos em TI e 26 anos em previdência complementar. Foi diretor, presidente e conselheiro de entidade de previdência e de associações de entidades de previdência. Bacharel em Direito e em tecnologia da informação, com MBA Executivo Internacional pela FIA / USP.

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