Um observador que conheça minimamente o Brasil, ao se deparar com um cenário de deterioração nos preços dos ativos domésticos, com taxas de juros em elevação, desvalorização do real e queda na Bolsa, poderia deduzir que “a culpa é do fiscal”, com grande possibilidade de acerto. De fato, questões com potencial de promover degradação nas contas públicas têm sido um dos principais gatilhos para piora nos preços dos ativos há algum tempo.
Após os significativos gastos necessários para conter a pandemia de covid-19, o mercado chegou a projetar que a dívida bruta ficasse em torno de 100% do PIB no ano passado, vinda de 74% do PIB em 2019. Ao final de 2020, a dívida bruta alcançou 89% do PIB e os números recentes, referentes a julho, já estão abaixo de 84%. No final do ano, a dívida bruta deve ficar em torno de 80% do PIB, segundo as estimativas do mercado. Para 2022, o governo recentemente reduziu sua meta de déficit primário em mais de 70%, o que deve manter a dívida bruta em rota decrescente. Com uma recuperação tão expressiva nos números fiscais, por que estamos novamente com taxa de juros de longo prazo acima dos níveis de março de 2020, em plena aversão a risco trazida pelo desconhecimento sobre a pandemia que começava a chegar por aqui?
A despeito da “bola da vez”, conhecida atualmente pelo nome de PEC dos Precatórios, mas que já atendeu pelos nomes de PLOA 2021 e PEC Emergencial, apenas neste ano (até o momento), acredito que todos esses eventos tiveram o efeito expectativa como causa principal. Não me refiro ao conceito básico de que o mercado opera com base em expectativas e reage de acordo com a diferença entre esse cenário projetado e o realizado. Minha opinião é que o mercado financeiro, como instituição, se alavancou no projeto de liberalismo econômico prometido pelo governo Bolsonaro, para usar um jargão próprio. Dessa forma, a partir de 2019, vivemos um ambiente em que esperamos que todas as decisões sejam orientadas para a diminuição do tamanho do Estado, que deve se especializar na entrega eficiente de serviços públicos de qualidade, deixando nas mãos da iniciativa privada aquelas funções consideradas não essenciais. Para a consolidação desse processo, é fundamental que sejam aprovadas de forma célere reformas de caráter estruturante, ainda que elas alterem totalmente a maneira como as decisões vinham sendo tomadas até então. O plano era esse. Só faltou combinar com o Congresso.
Não há juízo de valor quanto às preferências dos atores envolvidos no ato de legislar, inclusive porque essas opções podem se basear em preferências lícitas, ainda que menos eficazes economicamente. Talvez nós, que compomos a instituição “mercado”, tenhamos sido ingênuos e, seduzidos pela promessa liberal, esquecido que os processos que trazem mudanças efetivas ao país precisam de maioria constitucional, simples ou qualificada. Dito de outra forma, o ambiente político também precisa ser atraído pela teoria para que ela possa ser aplicada na prática. A composição do corpo de ministros do governo, que começou orgulhosamente técnico, e caminha a passos largos para um perfil político, é prova cabal de que qualquer projeto precisa de apoio político para se sustentar. Um mix entre as duas posições, desde o início do governo, poderia ter rendido mais frutos em termos de reformas.
Aproveito a oportunidade dada pelo último imbróglio fiscal para exemplificar a teoria da alavancagem de expectativas que levanto aqui. O crescimento das despesas com precatórios tem sido explosivo nos últimos anos, especialmente desde o início da Emenda Constitucional que implantou um teto para os gastos públicos no país. Ainda que o aumento nas despesas judiciais tenha um ritmo muito superior ao indexador do próprio teto, o governo liberal esperado pelo mercado deveria oferecer uma solução que honrasse o pagamento integral dessa dívida, no ano em questão, dentro do teto, e sem comprometer as demais obrigações, já tão apertadas entre um orçamento engessado de despesas obrigatórias.
Não há dúvidas que as opções disponíveis até o momento têm fragilidades e riscos, especialmente aquelas que propõem o parcelamento dos precatórios, que ameaçam a sustentabilidade da dívida. Dessa forma, é esperado que o mercado reaja com mal humor ao cenário. O ponto que levanto aqui é sobre o tamanho dessa reação. Ainda que seja dificílimo mensurar quanto de exagero existe na precificação de mercado, acredito que grande parte desse baque se relacione às expectativas sobre as resoluções que viriam de uma equipe econômica liberal. No caso específico dos precatórios, não existe, ou ainda não foi encontrada, uma solução perfeita. Até o momento, existem opções ruins e algumas menos ruins. O mercado reage à frustração e segue o seu curso, ainda que em outro nível de preço. Mas não é razoável que esse novo patamar seja o mesmo do início de uma das maiores pandemias que assolaram o mundo.
A nossa vulnerabilidade fiscal está intrinsicamente ligada à péssima maneira pela qual o dinheiro público é gerido no país desde sempre. Além do câncer da corrupção, gastamos muito e gastamos mal. Investimos em média 5,6% do PIB em Educação, acima da média dos países da OCDE, de 4,4%, e abaixo apenas da Suécia, Bélgica, Islândia, Finlândia e Noruega. Entretanto, o valor investido por aluno é bem abaixo da média, e concentrado no ensino superior, quando deveria ser focalizado na educação básica. O próprio Estado acaba por perpetuar desigualdades históricas, custeando universidades para alunos vindos do ensino privado. A Educação foi escolhida por ser um tema essencial para crescermos como nação, mas são vários os exemplos de péssimas políticas públicas, e consequente descaso com os recursos de todos. A fragilidade fiscal do Brasil, historicamente superior à maioria dos países emergentes, mesmo antes dos gastos para combater a pandemia, nos lembra que a nossa taxa de juros estrutural precisa ser mais elevada para atrair investidores.
A promoção de políticas e reformas que reduzam a dívida pública e melhorem o ambiente de negócios é urgente, mas não se tornará operacional neste ou naquele governo, ainda que a ideia seja sedutora. Um plano de melhoria institucional precisa de adeptos na sociedade civil para que estes escolham governantes alinhados ao tema. Os alicerces para que os princípios liberais fundamentem o nosso ambiente econômico estão sendo fincados. Mas não é tarefa para o curto prazo, ou para um governo.
*Estrategista Chefe da Mongeral Aegon Investimentos. Formada em Administração de Empresas pela Universidade Federal Fluminense com Mestrado em Economia pelo Ibmec.