A necessidade de adaptação às mudanças sociais, demográficas, econômicas e, sobretudo, trabalhistas experimentadas a partir da Constituição Federal de 1988 gerou a necessidade da alteração de nosso modelo de previdência. Foi aprovada a primeira alteração constitucional sobre esse tema, consubstanciada na EC 20, de 15 de dezembro de 1998 (emenda 20/1998).
Esta emenda trouxe importantes modificações ao sistema de Previdência Social brasileiro, tanto para a previdência pública, representada pelos regimes próprios (da União, Estados e Municípios) e geral de previdência social (gerida pelo INSS), quanto para a previdência complementar. Os três regimes estão alocados na seção III (da Previdência Social), do capítulo II (da Seguridade Social) do título VIII (da Ordem Social). Esta escolha do constituinte derivado indica que o regime jurídico aplicável às relações previdenciárias privadas não se insere na Ordem Econômica (título VII), mas sim no âmbito das relações sociais.
Seguindo os comandos contidos no artigo 202 da CF – modificado pela emenda 20/98 e que acolhe em seu bojo os princípios norteadores do sistema de previdência complementar – foram editadas as leis complementares 108 e 109, em 29 de maio de 2001, que completaram duas décadas de vigência sem alterações. Este aniversário é um convite para refletirmos sobre as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), colocando em perspectiva os principais efeitos da legislação especial e a sua evolução na compreensão do Direito da Previdência Complementar pelos Tribunais Superiores.
Dentre as alterações mais perceptíveis trazidas pelas leis 108 e 109/01, está o enfoque do regime de previdência complementar nos planos de benefícios(1) oferecidos aos participantes. Os planos – com os seus respectivos direitos e obrigações – passaram a protagonizar esse regime previsional, papel antes exercido pelas EFPC. Esse novo conceito jurídico central possibilita que a gestão pelas entidades fechadas e a atuação dos órgãos de regulação e de fiscalização pudessem ter a dimensão exata dos requisitos necessários para o atingimento da finalidade precípua da Previdência Complementar Fechada: garantir o “benefício contratado”, como preconiza o caput do art. 202 do Constituição.
Buscando elencar os principais avanços que se pôde observar com a edição das referidas leis complementares, trazemos aqui um retrospecto de alguns elementos, que contribuíram para o aperfeiçoamento e segurança jurídica do regime de previdência complementar fechado:
(i) o aperfeiçoamento da governança e medidas de democratização da gestão das EFPC: a gestão das entidades sofreu um impacto positivo difícil de dimensionar. A imposição de melhor capacitação para empreender em uma gestão profissional foi prestigiada, assim como o incremento da transparência de informações para os participantes. Estes, os verdadeiros destinatários dos recursos capitalizados nas EFPC, passaram a, obrigatoriamente, participar da gestão dos fundos de pensão;
(ii) a aplicação dos recursos correspondentes às reservas garantidoras: sob o nosso ponto de vista, houve grandes aperfeiçoamentos. Nesses vinte anos, em nenhum momento, foi desconsiderado que as EFPC precisavam, e ainda precisam, aperfeiçoar a sua capacidade de produzir retornos financeiros para cumprir seus compromissos. Para atingir esse objetivo, há a necessidade de capacitação profissional, pois a rentabilidade financeiras possui sempre imensos desafios. Chegamos, nesses vinte anos, à marca de R$ 1,00 Trilhão acumulados nos planos fechados de previdência;
(iii) o plano de custeio e o tratamento de déficits e superávits: a regulação a partir dos comandos das Leis Complementares cuidou o tema corretamente, trazendo um componente de justiça social, que determina que os participantes devem suportar o custo do seu benefício, seja com a participação do seu empregador ou por meio de sua poupança individual;
(iv) os planos instituídos: são os planos derivados de órgãos de classe ou associações, que têm proliferado nos últimos anos (como, p.ex., as OAB-Prev). Inicialmente, esses planos pareciam frustrar seus participantes, talvez pela novidade, mas hoje são um sucesso comprovado em várias EFPC e refletem a modernização do sistema; e
(v) os planos de benefícios complementares para os servidores públicos: de forma mais recente, esse importante movimento está se concretizando na dimensão pretendida, com a impositiva adoção por todos os entes federados até novembro de 2021.
Outro importante avanço pôde ser observado na compreensão do Direito da Previdência Complementar pelo Poder Judiciário. Os tribunais fomentaram, durante esses vinte anos, cuidadosos debates acerca da competência material para julgamento das ações que tratam sobre o contrato previdenciário celebrado entre EFPC e participante: tanto a Justiça Comum quanto a do Trabalho se declaravam competentes para apreciar a matéria.
Em um ambiente de insegurança jurídica, as ações judiciais movidas contra as EFPC eram predominantemente ajuizadas na Justiça do Trabalho, que se declarava competente sob o argumento de que o contrato de previdência complementar fechada era decorrente da relação de trabalho. Com isso, princípios próprios do Direito do Trabalho como o da inalterabilidade contratual lesiva, eram comumente aplicados à previdência complementar, em detrimento da legislação especial que rege o sistema.
O intenso debate acerca da competência resultou no julgamento dos recursos extraordinários RE 586.453 e RE 583.050 pelo Supremo Tribunal Federal-STF, com efeitos de repercussão geral. A decisão, publicada em 6 de março de 2013, definiu a competência da Justiça Comum Civil para julgamento dessas demandas e sedimentou relevantes aspectos jurídicos, servindo de alicerce para interpretação jurisprudencial subsequente.
Com esse cenário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a se debruçar sobre as questões controvertidas que orbitam nesse ramo do Direito, dentre as quais destacamos a inviabilidade de inclusão dos reflexos de quaisquer verbas remuneratórias reconhecidas pela Justiça do Trabalho no benefício de complementação de aposentadoria(2) e a definição de que o regulamento aplicável é aquele vigente no momento de implementação das condições de elegibilidade do participante(3).
Importantes teses, inclusive com efeito representativo de controvérsia, foram definidas, pelo STJ em um movimento que certamente contribuiu para a segurança jurídica da sociedade e a correta compreensão do contrato previdenciário.
A partir das referidas leis complementares, alguns temas, no entanto, demandaram um esforço interpretativo para serem adequadamente aplicados ou ainda pendem de aperfeiçoamentos. Passamos a listá-los alguns destes:
(i) a paridade contributiva: até os dias de hoje, há interpretações divergentes sobre este tema em relação aos planos oferecidos por órgãos da administração pública, aí incluída a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, as autarquias, fundações, sociedades de economia mista e outras entidades públicas;
(ii) o custeio administrativo das EFPC: o tema demandou longos anos e várias interpretações no decorrer do tempo, até que, atualmente, parece pacificado no âmbito dos órgãos de regulação e fiscalização das EFPC;
(iii) a questão tributária: em nossa visão, há carência de aperfeiçoamento, independente do caminho percorrido desde então, que não se revela como eficiente e atrativo para o incremento da poupança previdenciária. Este assunto tem sido objeto de renovados esforços para uma legislação que seja fomentadora da poupança previdenciária.
O aniversário de duas décadas da LC 109/2001 e da LC 108/2001 deve ser bastante celebrado, pois esse marco legal representa a proteção desse regime previsional, permitindo que as EFPC seguissem de forma positiva, em sua ampla maioria, proporcionando o pagamento de benefícios regulares a alguns milhões de brasileiros e suas famílias. Igualmente, essas normas puderam fazer com que os nossos Tribunais Superiores construíssem uma compreensão jurisprudencial consistente para o sistema de previdência complementar, sobretudo, enaltecendo a necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial dos planos capitalizados, única garantia de pagamento para os participantes, assistidos e beneficiários.
Flávio Martins Rodrigues – Sócio sênior de Bocater Advogados. Pós-graduado (MBA) em Fundos de Pensão pela UFRJ e em Reformas de Sistemas Previdenciários (Executive Retreat on Pension Reform) pela Harvard University; mestre em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes – RJ.
Fernanda Rosa Carneiro – Sócia de Bocater Advogados. Pós-Graduada em direito e processo do trabalho pela Universidade Cândido Mendes, em direito privado patrimonial pela PUC-Rio e em direito securitário pela Escola Nacional de Seguros.
*Artigo publicado originalmente no site www.migalhas.com.br
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Notas:
1 Embora não desfrutem de capacidade jurídica independente, os planos de benefícios mantêm independência em relação aos demais planos e à própria entidade.
2 Tema: 955 (recurso: REsp 1312736/RS) e tema: 1021 (recurso: REsp 1778938/SP e REsp 1740397/RS).
3 Tema: 907 (recurso: REsp 1435837/RS).